Eixo 3 – Autorizar-se contando com alguns outros
Por Maricia Ciscato e Renata Martinez
As coordenadas que permitem a alguém existir, tornar-se um ser falante, apaixonam pensamentos desde sempre. Partimos, com Freud e Lacan, da ideia de que cada um está ligado a seu mundo por uma trama de relações complexas, marcadas pela alternância entre familiar e estranho. Entre reconhecimento e desconhecimento, cada um se vira para se constituir em seus laços e caminhar por aí. Assim, numa composição mutante, temos a formação do laço social e, também, as suas rupturas.
Na cena ocidental deste início de século, nos deparamos com uma infinidade de vozes que clamam por espaço, legitimação ou mesmo existência. Se cada época imprime as suas marcas e delimita os territórios do processo de constituição das subjetividades, gostaríamos de discutir, no terceiro eixo destas Jornadas, as circunstâncias colocadas, hoje, para que uma autorização singular aconteça e para pensarmos “em quê o grupo conta no autorizar-se”.[1]
Tomaremos, inicialmente, a ideia de autorização de maneira um pouco solta, para nos questionarmos sobre seu significado, mas orientados pelo uso que Lacan faz desse termo na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” ao se referir à formação de um analista: “O analista só se autoriza de si mesmo”, diz ele.
Autorizar-se à função de analista exige um trabalho singular muito especial sobre o qual gostaríamos de pensar ao longo de nossa pesquisa. Mas não só. Anos mais tarde, na aula de 9 de abril de 1974 de seu 21º seminário, Lacan avança alguns passos sobre a questão da autorização ao incluir dois novos elementos que também vão nos interessar de perto – ele diz: “O ser sexuado só se autoriza de si mesmo – eu acrescentaria – e de alguns outros”.
Ao incluir o “ser sexuado” no ato de uma autorização, Lacan nos incita a tirar novas consequências das fórmulas da sexuação. Para isso, resgata o que está para além do universo regido pela égide do Nome do Pai, algo que nomeia aqui como “beira do real”[2], tocada pelo objeto a em sua dimensão de letra, de escrita, em uma montagem na superfície e no tempo. O objeto aparece aqui, então, menos como furo do que como um modo de gozo.
E, ao incluir “alguns outros”, nesse mesmo ato, Lacan nos direciona para todo um jogo com a alteridade. O modo de entrelaçamento entre individual e coletivo, com suas fraturas, furos e opacidades, aparece retratado em movimento e contingência. O que vai se desenhando é um fazer-se a partir do grupo, modos de servir-se e de prescindir dele. Não à toa, Lacan retoma aí o apólogo dos três prisioneiros, de seu escrito “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, de 1945, para destacar o que chama de um ballet entre os personagens, uma dança que os permite, ao final, entre precipitações e escansões, se reconhecerem e se deslocarem para uma saída.
Nesse movimento, o objeto a se revela elemento fundamental. Será, então, a partir da dimensão da letra que Lacan irá nos provocar para pensarmos a possibilidade de uma articulação entre “autorizar-se de si mesmo” e “de alguns outros”, fazendo da escrita a marca da diferença absoluta.
Eis algumas perguntas que propomos, a partir daí para nossa conversa em torno do Eixo 3 destas Jornadas:
Um analista só se autoriza de si mesmo – e de alguns outros. Podemos pensar que, em uma comunidade analítica, entre os que nela circulam, algo se escreve? O que se recolhe nesse entre que permite a alguém extrair dali um ato, deliberadamente solitário – o de “autorizar-se” na função analítica? Ou ainda: o que se escreve no ato de autorização?
Na dimensão da autorização, Lacan destaca que há algo de uma escolha presente. Se não estamos exatamente na lógica da escolha forçada – alienação/separação –, nem na lógica de uma escolha puramente egoica – em que cada um, diante de um cardápio de vestes imaginárias, escolheria a sua –, de que escolha se trata aqui? Que diferença se impõe entre uma “autonomeação” e um “autorizar-se de si mesmo e de alguns outros”? Nossa hipótese é a de que a autorização sustenta a marca de uma diferença absoluta – que carrega em si não apenas o gozo, mas também a perda de gozo aí implicada –, algo que faz dessa escolha algo muito preciso sobre o que desejamos avançar.
Importa-nos de perto nessas Jornadas estarmos com os olhos voltados para os tempos que correm. Tendo em vista nosso contexto, em que a extrema direita assombra os diferentes meandros das vidas cotidianas nos mais diversos grupos sociais brasileiros, destacamos, por fim, algumas questões: como têm se virado as minorias, os falasseres em peles não branca-cis–hétero no Brasil de hoje? Como fazem gays, lésbicas, trans… para se autorizarem em meio à barbárie[3] da época? E negros e negras? Seria possível falarmos de autorização também aí? Haveria uma diferença, por exemplo, entre “tornar-se negro” e “autorizar-se”? Qual seria ela?
E em nossas variadas práticas cotidianas como analistas na cidade – desde os atendimentos particulares ao trabalho em instituições, passando pela prática em conversações –, o que tem nos desafiado nesses tempos que correm? Como temos lido as variadas articulações entre sujeito e objeto nos “ballets contemporâneos” ou nos tantos coletivos que proliferam e se mostram cada vez mais como uma marca da época? O que temos aprendido sobre a importância de sermos flexíveis nas estratégias e táticas, sem deixar de nos mantermos firmemente orientados pela política da psicanálise na clínica e na cidade?
Aguardamos as contribuições de todos para avançarmos.
Este argumento continua em construção e aberto a reescritas pela contribuição de tod@sdurante nossas 29ª Jornadas. Ao trabalho!
[1] Vieira, M.A. et al., 2022. Disponível na Bibliografia sugerida que consta do site das 29ª Jornadas Clínicas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio – e do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro – ICP-RJ – Lógicas coletivas nos tempos que correm.
[2] Umas das traduções sugerida por Marcus André Vieira para o termo em francês bord du réel, mais comumente traduzido por “borda do real”. Cf. em Vieira, M.A. et al., 2022.
[3] O termo “barbárie” é utilizado por Lacan em seu texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, na seguinte passagem: “1º) Um homem sabe o que não é um homem; 2º) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens; 3º) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. Movimento que fornece a lógica de toda assimilação ‘humana’, precisamente na medida em que ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, no entanto, reserva a determinação essencial do [eu]…”. Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 213.