Eixo 1 – Psicanálise e política: ativismo revisitado

 

 

Por Renata Martinez

Setembro de 2022

 

A  psicanálise e os psicanalistas estão sempre às voltas com mudanças: sejam elas impostas pelo espírito do tempo sejam aquelas empreendidas no percurso de uma cura, onde o analista, seu desejo e seu discurso estão atentos às invenções singulares. Esse movimento em direção ao inédito, recolhido e construído dos restos e excessos de uma vida, implementa o que os analistas lacanianos costumam nomear como Política do Sinthoma. Na clínica do “um a um”, entre singular e universal, se exerce a política da psicanálise.

No “um a um” revela-se também o movimento da Escola como coletivo, outra vertente dessa política. A aposta Escola – entre os acontecimentos que a compõe e os desejos que a sustentam – compreende em si um paradoxo descrito por Jacques Alain Miller em sua Teoria de Turim: “uma formação coletiva que não pretende fazer desaparecer a solidão subjetiva, mas que pelo contrário, se funda nela, a manifesta, a revela.”1 Um funcionamento bastante diverso daquele dos grupos descrito por Freud em Psicologia das Massas e Análise do eu, e que só se torna possível na medida em que cada um dos membros desse “coletivo de solidões” está advertido da relação entre causa e Ideal, consentindo com os furos e com a perda de gozo fundamental implicada no processo.

A paisagem atual é composta por uma verdadeira explosão de movimentos sociais e coletivos, cuja marca comum está na força que imprimem. Feministas, trans, negras, negros, lésbicas, indígenas, sem-terra, sem-teto e tantos outros são as minorias e os minorizados que, agrupados, têm voz ativa e visibilidade, escapando, assim, da ferocidade de um sistema que as quer fora da cena. Decididamente sustentados por um traço comum, por alguma identidade, esses corpos mostram-se, atuam, ocupam novos espaços e provocam reações as mais diversas, convocando a sociedade a repensar antigas coordenadas.

Esse verdadeiro mosaico urbano reflete a subversão de toda a lógica entre universal, particular e singular, e bagunça ou pluraliza a suposição de saber. De forma geral, esses novos ativismos, muitas vezes sustentados pelas chamadas políticas identitárias ou culturais, são tomados por sua vertente pejorativa e vêm sofrendo questionamentos no sentido de conduzirem a uma redução egóica, demasiadamente imaginária e avessa à alteridade, ao inconsciente e à própria psicanálise. Como nos situar nesse cenário complexo? Será que a perspectiva psicanalítica é de fato incompatível com as perspectivas das demandas dos coletivos que de forma expressiva oferecem nome e existência a esses corpos subalternizados? Não seria esse rearranjo também uma oportunidade de, justamente, propiciar a aparição de formas mais plurais, favorecendo aberturas e lugar ao diferente?

Podemos pensar que nesse debate o equívoco estaria em salvaguardar um lugar extraterritorial para a psicanálise, de onde partiriam críticas e combate a um mundo visto unicamente como identitário e fechado ao inconsciente. Temos a impressão de que, desse modo – na contramão do que nos alertou Freud sobre a psicanálise não ser uma Weltanchaung, uma visão de mundo –, apenas somos acusados de sustentar um discurso pseudo-desidentitário, no intuito de ocultar opressões para melhor exercê-las.

Na direção de alcançar no horizonte a subjetividade de nossa época, nos cabe, inversamente a isso, acolher os movimentos, encontrando neles mesmos as brechas por onde o inconsciente aparece. Nesse intuito, no Eixo 1 dessas Jornadas, queremos centrar nossas discussões em torno desse ponto buscando onde a psicanálise pode aí se enlaçar. Como nos deixar atravessar pelas novas caras da vida política contemporânea e saber descobrir nelas o real tão caro à psicanálise?

Encontramos no ativismo de Helena Silvestre, nossa convidada para a 1ª Plenária, um modo muito claro de entender a vida como atividade política. Sua escrita é corte e costura, que alinhava palavras a partir de uma necessidade essencial de comunidade e de mudança.

Em seu livro Notas sobre a fome, aprendemos a experiência viva de formar coletivos de diversos. Ocupações, movimentos e grupos são seus “inventos-militantes”2, onde o paradoxo do Um e do Múltiplo se apresenta sem inviabilizar a possibilidade de existência desses conjuntos, que têm unidade, mas que não necessariamente achatam ou tornam homogênea a multiplicidade e as diferenças de seus componentes. “Orbitando incompletudes”3, ela constrói sua ação na montagem e uso dos inúmeros coletivos que prescindem de um universal para existir, durar e transformar o mundo, “convidando a mover e a saltar da aparente condição de imobilidade para uma condição de movimento orgânico, impossível de ser apropriado por qualquer definidor estático”4.

Seguiremos trabalhando o tema juntos e, desse encontro na Plenária, buscaremos tecer algumas possíveis respostas para as tantas perguntas que nos movem nessa pesquisa. Para isso, esperamos contar também com os Grãos enviados por vocês para as discussões nos pequenos grupos. Ao trabalho e até novembro!

 

 

1 MILLER, Jacques-Alain. “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”. Opção Lacaniana Online, Ano 7, n. 21, nov. 2016. 16 p. ISSN 21772673. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf. Acesso em: 13 jul. 2022.

 

2 SILVESTRE, Helena. Notas sobre a fome. São PauloExpressão Popular, 2021. 144 p. ISBN 9786558910350, pg. 68.

 

3 Idem, pg. 70.

 

4 Idem, pg, 68.

 

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Por Ana Lucia Lutterbach e Cleyton andrade

Abril de 2022

 

Sabe o que estava acontecendo há cem anos? Muita coisa… Foi nesse contexto que, em 1921, Freud publicou Psicologia das massas e análise do eu. Em 1920, ao mesmo tempo em que escrevia a primeira versão deste texto, ele publicou Além do princípio de prazer. Aí você pode dizer que tem muito tempo e que isso ficou para trás, que está ultrapassado, ficou velho… Isso tem alguma coisa a ver com os dias que correm? A psicanálise tem alguma coisa a ver com o que está acontecendo?

Tem muita coisa acontecendo hoje no Brasil e no mundo. O ano de 2022 é complicado demais para se fazer uma lista de coisas que estão pegando fogo. Mas nós, psicanalistas da EBP, Seção Rio de Janeiro, queremos ter uma conversa sobre a psicologia das massas, os coletivos, os movimentos, e a tal análise do Eu de que falava Freud. Dizem que a própria psicanálise está ultrapassada. Dizem que ela só se ocupa da clínica, que é só para a elite e que não se interessa por outros assuntos sociais, da cultura, da política. Então, o que ela tem a ver com tudo isso? Tudo.

Nesse texto de 1921, Freud misturou uma reflexão clínica e metapsicológica da teoria das pulsões com reflexões sociais, políticas e ainda com uma questão estética. Ao invés de virar uma miscelânea, passou a ser uma orientação. Ele embarcou na ideia de que o individual e o social não eram tão separados assim. Ele incluiu a dimensão metapsicológica na psicologia social. O resultado foi que a psicologia das massas ou psicologia social, dos coletivos, ajudou a entender a constituição subjetiva, e, ao mesmo tempo, a discussão sobre o sujeito e o Eu, e passou a ser uma mão na roda para saber o que estava em jogo nos grandes grupos e coletivos.

Vemos aí que o Eu pode se dissolver na massa. Essa mistura louca entre massa e eu é porque os dois funcionam com a libido. A ideia é tão radical que é uma porta aberta para pensar uma clínica do laço social. Pois é, cada um vai encontrar a sua leitura: é um texto clínico para uns, é um texto social para outros, um texto de reflexão política para outros ainda. Qual a sua leitura?

Durante a Segunda Grande Guerra, esse texto caiu como uma luva para Bion pensar um trabalho com os grupos com relações horizontais. Era sem líder, o grupo se reunia em torno da tarefa. Mas não é tão simples. Não tem líder, mas o lugar não fica vazio. Dá até para pensar o cartel. A função do mais-Um, num grupo horizontal, já mostra que nós, lacanianos, estamos comprometidos com coletivos sem deixar de lado o um-a-um.

Nessa perspectiva de coletivos e grupos, o próprio Lacan se valeu desse texto de 1921 para pensar também o tempo lógico. Vemos, assim, que os coletivos já estão na nossa tradição, agora é colocar na roda.

Não queremos deixar de dizer que foi a partir do texto de Freud que Adorno nos advertiu sobre as fake news, afirmando que elas são um instrumento fascista. A propaganda fascista não cai nessa de usar argumentos racionais. Ela intui que isso não seduz as massas que só se juntam em torno de coisas irracionais, quando é o afeto que prevalece. Portanto, tem aí um aspecto em que estética se junta com a política. Tudo isso para que a gente se dê conta de que inconsciente e pulsão, libido, gozo, identificação, ideal são obrigatórios para discutir a sociedade, a política. A psicanálise pensa a cultura sem deixar de ser clínica – esse é o ponto.

Os movimentos sociais estão aí. E não estão para brincadeira. Inclusive porque todas as grandes mudanças da história vieram não de um ou outro indivíduo, mas, sempre, dos movimentos coletivos. A história se movimenta com os movimentos. Eles estão aí para lembrar que o neoliberalismo arrumou um jeito de desarticular os coletivos. Pensar só o indivíduo pode ser uma ação metódica, uma operação do capital. Dizer que os coletivos são bobagens ou mero imaginário já é uma posição, não necessariamente uma constatação. O que você acha? Os coletivos podem furar o Outro que posa de não barrado?

A ética da psicanálise, tal como nos propõe Lacan com Freud, é também uma política na medida em que permite ao sujeito se dar conta de que ele está no mundo não como um mero espectador, nem vítima, mas está implicado no mundo, é responsável pelo o que lhe acontece, como também pelo destino dado ao seu próprio gozo. Nesse caso, poderíamos dizer que a psicanálise, mesmo na clínica, não se opõe ao ativismo.

É sobre isso que queremos conversar, sobre psicanálise e política, e sobre os coletivos como uma maneira de cada um, do seu jeito, se servir para sair da inércia ou do jugo, para tomar a palavra.

Bora lá escrever, vamos conversar!

 

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