Eixo 2 – Bolhas, hashtags, engajamento: incidências digitais

 

 

Por Isabel Duarte e Rodrigo Lyra

 

Com ou sem pandemia, a internet e os aparelhos tecnológicos se embrenham nos corpos. Cada rede social, cada aplicativo, cada game, cada mecanismo de busca funciona a partir de uma lógica própria, desenvolvida e mantida por seres humanos, mas automatizada pelos chamados algoritmos, uma camada invisível que se impõe como mediadora da vida. Na prática, quase sempre que usamos a internet para nos informar, nos divertir, publicar opiniões, solicitar serviços, fazer compras etc., somos em algum grau pautados por esses algoritmos, nos quais estão embutidos os valores e os interesses dos atores que os controlam.

Nesse ambiente, paradoxos proliferam. Há tantas novas formas de ganhar a vida, mas quão profundas são as tendências de precarização do trabalho. O alcance para a expressão de opiniões e da criatividade é admirável, mas o que é rápido e reducionista se dissemina mais facilmente. Diversos gostos, interesses e formas de ser encontram múltiplas referências e vivas comunidades, mas os meandros imperceptíveis dos algoritmos reinscrevem perigosamente a opressão e o racismo.

Miramos esses e tantos outros paradoxos com um duplo interesse. De um lado, a leitura macro do momento da civilização; de outro, o universo único que se cria a cada vez que ouvimos alguém na experiência da psicanálise. Este eixo transita, portanto, entre um esforço democrático de que a sociedade conquiste mais lucidez sobre os efeitos das tecnologias – o que vem sendo chamado de tecnopolítica – e o recolhimento de achados clínicos sobre a vida falante e sexual em meio a tamanhas novidades.

Freud, porém, já apontava que não existem dois lados, nem duas dimensões. O texto de orientação dessas Jornadas – Psicologia das massas e análise do eu – é um dos grandes marcos da perspectiva freudiana, segundo a qual a o eu é uma construção eminentemente coletiva, e os coletivos só podem ser compreendidos quando se levam em conta tendências pulsionais singulares.

Tanto tempo após essas lições freudianas, vemos hoje a internet povoada por redes sociais compostas de perfis individuais, claríssimas visualizações do quanto sociedade e indivíduo são categorias artificiais e inoperantes, quando entendidas como entes distintos. Interessam-nos, assim, as tantas dobradiças insondáveis pelas quais algo do real se exibe, ora no espaço do Outro, ora no campo da individualidade.

Uma grande preocupação da tecnopolítica atual, que conversa de perto com questionamentos inerentes à psicanálise, pode nos servir como porta de entrada. O ambiente on-line promete ser a realização máxima da liberdade, já que não impõe censuras ou controles externos para a navegação. Porém, o uso dos nossos dados pessoais e a arquitetura das redes sociais arriscam produzir o que nossa convidada Fernanda Bruno chama de “sequestro do futuro”, onde nossos comportamentos seriam calculados e manipulados a serviço do mercado. Interessa-nos localizar o que há de diferente entre esse processo atual de determinismo e a perda constitutiva de liberdade que a alienação ao Outro impõe como etapa inescapável da constituição do sujeito.

A perspectiva da psicanálise sempre frisou que, por serem vividos através das malhas da linguagem, com seus limites, impossibilidades e lugares marcados, a sexualidade e o corpo têm um caráter necessariamente problemático para cada um. Ocorre que afirmar esse caráter problemático como necessário e estrutural não significa ignorar o quanto sua experiência e sua manifestação variam profundamente quando mudam as circunstâncias em cada época.

Aqui se inscreve a pesquisa que define este eixo. Bolhas, hashtags, engajamento são termos da moda, mas são também referências e pontos de apoio para uma pesquisa coletiva sobre a polarização, o ativismo e as manifestações possíveis do inconsciente no ritmo de um campo digital que levou ao extremo a metonímia capitalista, onde há sempre mais um objeto à mostra para capturar a atenção, os dados, o dinheiro. Em suma, investigamos os modos atuais de acessar ou recusar – tudo aquilo que surge como estranheza e nos perturba.

Seja pela dinâmica própria das redes sociais, seja pelo levante de incontáveis movimentos emancipatórios que tensionam os consensos, o ambiente está claramente conflagrado; e os tempos correm… Nesse contexto, é inútil desejar que afirmações de identidade venham publicamente acompanhadas de testemunhos de divisão subjetiva, à moda antiga. Em lugar de denunciar um dos impossíveis da época, podemos reconhecer que agora é preciso criar espaços suficientemente legítimos para que os sujeitos consintam em endereçar a alguém aquilo que lhes causa estranheza. Como fazê-lo, como temos feito? Seja na experiência individual de uma análise, seja nos desafios coletivos, são perguntas que nos reúnem neste eixo das Jornadas.

 

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