Fabian Naparstek [1]
Psicanalista, Membro da Escuela de Orientación Lacaniana (EOL) Argentina e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Analista da Escola (AE) no período de 2002 a 2005.
Em 1944 Sartre escrevia sua famosa obra de teatro “A porta fechada”[2], onde mostrava-se que o inferno são os outros. Ainda não havia terminado a segunda guerra mundial, tampouco se havia liberado Paris e Sartre colocava sobre a mesa o problema do confinamento e dos outros. A obra mostrava um só cenário contrariando toda a possibilidade de se pensar um lugar diferente. De fato, J. Lacan discutia com Sartre[3] — planejando exatamente o contrário — já que para ele não havia saída para o sujeito sem ser com o Outro. Com efeito, o grande desafio — depois da Grande Guerra — era o de uma sociedade nova onde as diferenças possam coexistir inventando com cada uma delas seu próprio mundo. Na verdade, no meio de uma época em que primava a ilusão das máximas liberdades, J. Lacan também anunciava o retorno da xenofobia e do racismo. Quanto maior “universalização da ciência”[4] — o que depois se chamou de globalização — maior seria o rechaço dirigido aos grupos diferentes. Esse mundo das diferenças no qual muitos de nós acreditávamos e defendíamos até faz pouco tempo — e seguiremos defendendo com certeza —, se converte cada vez mais em um só cenário. Esse mundo virtual que parecia nos abrir as mil e uma possibilidades de encontro com qualquer um — Tinder, Instagram, etc, pelo menos — começa a se fechar. Todos ficam com a porta fechada. Não importando se trata-se de paraísos democráticos ou de reinos autoritários. Encerrados com nossos mais íntimos para escapar desse estranho em que se converteu o outro. Entretanto, mesmo nesse confinamento íntimo também se pode enfiar o vírus. Esses íntimos, com os quais habitualmente e paradoxalmente compartilhamos menos que com os estranhos, também se transformam em alheios. Grande parte das redes hoje se ocupa em pensar e a zombar sobre como passar o tempo sem que os nossos mais íntimos se transformem em um inferno. O vírus do desconhecido penetra por todos os lados.
Até você mesmo poderia estar incubando o desconhecido sem sabê-lo. Você mesmo começa a desconfiar do que acontece consigo. Você mesmo tem que estar atento sobre o que lhe sucede e em última análise é você mesmo quem se transforma em um estrangeiro para si mesmo. Por fim, se busca isolar o corpo. É o encontro entre os corpos o que se põe em questão. Parafraseando esse dito político para enfatizar do que se trata: é o corpo, estúpido!!!!
É o corpo que se tornou estrangeiro!!!
A ciência nos fez crer que podíamos dominar cada vez mais nosso corpo, viver mais tempo e com corpos jovens. O vírus não diferencia classes sociais, raças, identidades de gênero, etc, e ataca — na sua forma mais letal — especialmente àqueles que tem a marca do real do tempo no corpo.
Mas, como também sinaliza Lacan e sublinha J-A. Miller: o corpo é esse outro estranho para você mesmo. “UOM kitemum corpo e só-só Teium.”[5]
Com efeito, vamos ver como esse acontecimento de corpo no social — onde a pandemia nos lembra a cada instante que cada um tem um — que consequência poderá trazer. Poderemos ver, não sem o Outro, se vamos poder nos desembaraçar ante essa irrupção do corpo real. Se poderemos encontrar uma saída, para além da vacina, que nos leve a novos modos de segregação (“O vírus chinês”, Trump dixit). Uma via que não implique a segregação para com os outros e aponte em direção ao mais real e êxtimo que tem o parlêtre; o corpo.
Buenos Aires, 21 de março de 2020
Tradução: Bruna Guaraná
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[1]. Esse texto foi escrito na quarentena.
[2]. Sartre, J. P. : « Huis clos », En: Huis Clos, suivi de ‘les Mouches’. Ed. Gallimard.
[3]. Lacan, J. : “El Tiempo Lógico y el Aserto de Certidumbre Anticipada. Un Nuevo Sofisma”, In: Escritos 1. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI.
[4]. Lacan, J.: “Proposición del 9 de octubre de 1967 sobre el psicoanalista de la Escuela”. In: Otros Escritos. Buenos Aires-Brcelona-México: Ed. Paidos, 2012, pag 276.
[5]. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 561.
“É o corpo que se tornou estrangeiro!” [1] – Jornadas EBP RIO e ICPRJ
[…] [1]. Fabián Naparstek, na noite de lançamento das XXVIII Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP RJ. Acesso em <https://jornadasebprioicprj.com.br/2021/o-corpo-estrangeiro/> […]