11 de novembro de 2021 | Boletim GPS

Boletim GPS

Por Ruth Helena P. Cohen

“Sair da caixinha, na verdade, é porque a caixinha se desmanchou. Nós estamos todos nus. Talvez aquele espelho que os europeus trouxeram pra trocar com a gente na praia tenha se invertido e agora eles estão vendo a sua própria cara, a cara do engano”[i]

Este boletim é dedicado ao nosso convidado Ailton Krenak, líder indígena, escritor e ambientalista, que vive na região do médio Rio Doce, em Minas Gerais. Trata-se de um bravo guerreiro, que no domínio político despontou fazendo valer sua palavra no cenário nacional e internacional. Participou, dentre outros momentos históricos, da fundação da União das Nações Indígenas e da Constituição Brasileira de 1988, na qual promoveu a aprovação da emenda constitucional que garantiria direitos aos povos originários.

Escutar o que ele diz e escreve abre um horizonte de infinitos desafios para os brancos colonizadores, que esbarraram e continuam assistindo à resistência daqueles que com seus cantos, danças e marcas corporais insistem em manter suas tradições, ensinando sobre o desejo decidido na luta por um direito adquirido e ameaçado pela sociedade brasileira, o Marco Temporal.

Livros como O amanhã não está à vendaIdeias para adiar o fim do mundo e A vida não é útil  nos levam a refletir sobre a ideia de como podemos tecer laços entre mundos, onde, num extremo, tem “gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso?”[ii]

Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Então um deles me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar. E o mundo parou.[iii]

 O mundo parou com a pandemia e somou um luto àquele que os Krenak e outras aldeias espalhadas pelo Brasil já viviam. Ainda sentimos o “hálito de uma doença que só atinge os humanos”, diz ele em seu diálogo com o escritor Valter Hugo Mãe, que lhe dedicou o livro “Doenças do Brasil”. Este último descreve com maestria a fera branca, devastadora, oposta ao diálogo, que, ao falar, mente. O artista nos convoca a recusar essa herança, mas nos responsabiliza pelos efeitos ainda degradantes de uma colonização que não cessa de se escrever, nas carnes, negras, vermelhas e brancas pobres. Na conversa entre artistas, nosso convidado se pergunta: quem são os brasileiros? Uma elite branca patriarcal que ainda insiste em imperar sobre os que ficam à margem, tirados de cena por epidemias, pobreza, fome e violência?

Miller, na teoria de Turim, nos alerta para o perigo da lógica do “Nós”/ “Eles”, raiz da segregação e do racismo, acrescido pelo ideal democrático da maioria dominante, que exclui minorias, impondo ao “para todos” uma “mesma ordem de ferro”, como nos diz Lacan em 19/03/1974. Mas há “Uns” que fazem resistência ao “todo”. Nessa topologia especular, nos vemos sob o olhar dos povos indígenas e nos damos conta de que estamos nus, de que nossa imagem distorcida revela corpos de vida despedaçados, devorados pelo real. Ele nos alerta: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa?”[iv]

Lacan, ao declarar em seu seminário sobre a “Lógica da fantasia” que “o inconsciente é a política”, nos incita a pensar que também a política da vida pública nos atravessa e modifica a subjetividade de nossa época e que temos, como habitantes da Terra, que nos responsabilizar pela escuta não só do exilio estrutural do ser falante, mas também dos efeitos coletivos das “formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria”[v], pois o consumo não é só da natureza, mas também de subjetividades. Com Davi Kopenawa (2015, p. 390)[vi], aprendemos o que define a política dos povos indígenas:

“Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama[vii] e dos Xapiri[viii] que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmas. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”.

Um dos nomes da vida se aplica à Aliança dos Povos da Floresta, identidade de um movimento que se contrapõe ao “povo da mercadoria”, como Davi Kopenawa identifica os supremacistas representantes do patriarcado branco, que demarcam a “estupidez etnocida, ecocida, e em última análise suicida”, como denuncia Viveiro de Castro, no prefácio do livro “A queda do céu”, do autor xamã supracitado.

Ailton Krenak, como antídoto às doenças do Brasil, sonha com paraquedas coloridos, que nos oferecem os artistas e nos servem de “escudo invisível”. Um enorme paraquedas nos dá Carlos Drummond de Andrade[ix], que transmuta a dor em poesia.

O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição

Retomo as minhas palavras do lançamento das XXVIII Jornadas para ratificar que nosso convidado representa a bússola que nos orienta nesse trabalho, dentro e fora do campo freudiano. Ele nos ensina como é possível sobreviver à “máquina devoradora de mundo” e como vidas insistem em seguir seus rumos. Alumínio, manganês e ferro comeram os peixes, mas essa água barrenta não desiste de escorrer como uma lágrima, insistindo em não-toda morrer. Apostamos nos nomes da vida, tendo como ferramenta a psicanálise, que, com a lâmina afiada de seu discurso, busca o que é “im-possível” saber, dizer e fazer.


[i] Krenak, Ailton. “Por que não conseguimos olhar para o futuro?”. In: https://revistatrip.uol.com.br
[ii] Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das letras: 2019, SP, p 51.
[iii] Krenak, Ailton. O amanhã não está à venda. Companhia das letras: 2020.
[iv] Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras: 2020, 2ª edição, p 31.
[v] Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das letras: 2019, p 45.
[vi] Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. A queda do céu. Companhia das Letras. Edição do Kindle.
[vii]Omama é atribuída à origem das regras da sociedade e da cultura yanomami atual, bem como à criação dos espíritos auxiliares dos pajés. O filho de Omama foi o primeiro xamã.
[viii] Os xapiri, os espíritos da floresta, foram deixados por Omama para que cuidassem dos humanos.
[ix] Andrade, C.D. O maior trem do mundo, Poesia completa: conforme as disposições do autor. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 2001
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