EIXOS TEMÁTICOS
PSICANÁLISE E FORMAÇÃO
Em um cenário de perdas e desamparo, a psicanálise revela-se uma trincheira contra a pulsão de morte. Desde os momentos iniciais da pandemia, sinais de vida são emitidos. O infamiliar emerge no confinamento, assombrando o sujeito. A angústia pede passagem. Quando a urgência em falar se engancha ao amor de transferência, o desejo do analista, em sua função de sustentar o trabalho, faz a oferta da Outra cena. Nos rastros deixados pelo encontro traumático com o horror, a doença e a morte, apostamos no trabalho de luto para situar as perdas, conjugar no singular as marcas depositadas em cada um e relançar o desejo.
O apelo a recursos virtuais desafia a escuta a não se desviar dos equívocos significantes que tocam o corpo. É chegado o momento de interrogarmos o que daí se extrai sobre o lugar do psicanalista.
A imersão nas atividades da Escola vivifica a prática da psicanálise e a formação permanente do psicanalista.
Se a psicanálise desponta como um nome da vida, que outros nomes vemos surgir da experiência do inconsciente?
Convidamos os/as colegas a trazerem para debate percursos e impasses da clínica vividos nesse período.
Angélica Bastos e Maria Inês Lamy
EIXO TEMÁTICO: O REAL E O VIRTUAL
O real sempre foi uma questão para a psicanálise. Freud o abordou, usando o substantivo que lhe corresponde, realidade, adjetivando-a como psíquica, ou seja, constituída pela linguagem inconsciente na articulação com o corpo e suas bordas erógenas. Bem adiante, ele aponta que os objetos tecnológicos de sua época, funcionando como extensões do corpo, permitem expandir os limites dos nossos órgãos motores e sensoriais [1] no trabalho de constituição desta realidade psíquica.
Para Lacan, a realidade psíquica, com ou sem tecnologia, depende da virtualidade constituída pelo que ele chamou de semblante – amálgama de imaginário e simbólico – pelo qual se tenta acessar o real do corpo de gozo. Lacan problematizou tanto o real ao ponto de substantivar o termo, distinguindo-o nitidamente da “realidade psíquica”. Assim, o real lacaniano se encontra em coalescência com os semblantes, mas não se reduz a eles. Ao contrário, o real causa e provoca os semblantes sem que estes jamais alcancem dizê-lo todo. Desde a antiguidade, reconhecemos nomes – arco-íris, trovão, estrela cadente – como formas de interrogar o real.
E novos semblantes surgem, pois, a cultura não cessa de se modificar. Há alguns anos o laço social vem-se transformando. Nossa forma de endereçamento ao saber, nossas relações com amigos, a forma de encontrar novas parcerias amorosas ou sexuais, o trabalho, a política, tudo isso e muito mais, de uma década para cá, começou a acontecer também no espaço “virtual” propiciado pela internet. Aspectos cruciais da vivência humana já vinham sendo profundamente transformados e agora, com a pandemia, ficou ainda mais claro que a subjetividade da época é, e será cada vez mais, profundamente influenciada pelo mundo virtual tecnologicamente ambientado.
A internet constitui uma espécie de novo órgão de nosso corpo[2]. Assim como o surgimento das novidades de sua época, que Freud comentou sem ilusões: o telefone que permitiu a voz ultrapassar distâncias até então intransponíveis, o microscópio que ampliou a visão de coisas antes invisíveis, a fotografia que reconfigurou a memória, etc.
Não podemos então nos contentar em analisar a internet apenas como um lugar de inflação do imaginário, dos selfies, de uma virtualidade que deixa escapar o real que move os semblantes mais ainda. O real sempre escapa, e agora se ressitua no litoral dessa nova virtualidade porque os corpos de gozo não deixam de estar aí; além disso, devido aos algoritmos que estruturam o campo internáutico, constitui-se, cada vez mais, uma malha simbólica “inconsciente” que modela a nossa subjetividade.
Se o Inconsciente é o discurso do Outro, há que se decifrar os modos sintomáticos de enodamento entre real, simbólico e imaginário numa época em que nos tornamos cada vez mais, segundo a expressão de Eric Laurent, internautres [3]. Ou seja, entre o real e o virtual, interessa à psicanálise auscultar os nomes que hoje interrogam a vida, conforme a proposta dessas Jornadas.
Adriano Aguiar e Heloísa Caldas
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[1]. Freud, S. O mal-Estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[2]. Laurent, E. Jouir d’internet. La cause du désir nº 97, 2017.
[3]. Laurent, E. Op.cit.
EIXO TEMÁTICO: ARTE E ARTIFÍCIOS
O tratamento do real que as artes imprimem no mundo se reafirma sempre, em qualquer tempo. O real se impõe e resiste à representação. E nesse vácuo que se produz, a arte como ato e como ação, se materializa. A arte acaba também operando no mundo das coisas, com suas disrupções, uma política própria: invenção, corte, descontinuidade. Neste momento em que atravessamos horas a fio de trabalho nas plataformas digitais, experimentamos efeitos que nos interrogam. Como, para além de qualquer ficção, recriar em ato uma recomposição da vida, a partir da vida online? Ao lado disso, toda uma vida, e de muitos, transcorre offline, visitada pelos assombros da morte, encarnada também na violência, na truculência, no descaso.
Freud e Lacan não recuaram em aprender com a arte e em apontar o efeito de suas invenções no tratamento da dor de existir de quem a cria ou de quem dela usufrui. Quer seja enquanto recurso face ao impossível de suportar, quer seja na fruição da contemplação da beleza que vela o horror, ou ainda, na surpresa, quando somos olhados por uma obra que excede a tela da beleza e produz deslocamentos.
A arte é assim, ato que as palavras não recobrem e, por isso, pode ser um recurso para cada um, aberto a diversos efeitos, como o enlace entre corpo e nome que Joyce nos ensina. Ao lado disso, ao lançar mão de suas invenções singulares, sintomáticas, cada um pode também criar artifícios próprios para fazer frente às irrupções do real contingente. A vida em tempos de pandemia amplifica a experiência do real e pede contornos para fazer borda, à beira de um sentimento de mundo em rota de colisão.
A cada um, no confronto com o isolamento social e as restrições de circulação, ou na impossibilidade de seguir as recomendações sanitárias, a angústia do adoecimento, o medo da morte e a fragilidade da vida exigem um esforço a mais. Como apelar para os próprios artifícios, sempre singulares, para lidar com as contingências de existir nesses tempos?
Convidamos cada um de vocês a entrar nesse esforço de leitura para recolhermos o que vem se depositando em soluções nas artes visuais, na literatura, no cinema, na clínica, nas ruas e onde mais se puder encontrar marcas dos modos de viver que respondam aos desafios de nosso tempo.
Andrea Vilanova e Cristina Duba