Isabel do Rêgo Barros Duarte
Saí das Jornadas do ano passado decidida a me oferecer para coordenar as próximas e tive o prazer de ser muito bem recebida pelas diretoras da EBP-Rio, Maria Inês Lamy, e do ICP-RJ, Marcia Zucchi. A razão dessa decisão foi que tive um pouco de clareza do que gostaria de assistir no ano seguinte, como uma espécie de desembocadura dos últimos anos de Jornadas do Rio. Gostaria de ouvir mais casos clínicos, discutidos por toda a nossa comunidade, e não apenas nos fóruns menores que se formam nas mesas simultâneas – que, aliás sempre são a minha parte preferida nos eventos do Campo Freudiano. E gostaria que se falasse sobre o que, na primeira conversa com Ana Beatriz, com quem tenho o prazer de dividir essa coordenação, nomeamos de “feijão com arroz” da psicanálise. “Feijão com arroz” de jeito nenhum no sentido do que é simples, fácil ou banal (cá entre nós eu não sei fazer feijão, acho dificílimo), mas sim no sentido do que é básico ou fundamental. Desde aquele momento, Ana Beatriz já tinha a ideia de falar sobre a interpretação. Eu fui chegando a isso um pouco depois.
Ao estilo making of que propomos hoje para este Lançamento, vou falar das duas vias como as Jornadas e eu chegamos ao tema da interpretação.
A primeira foi a partir de uma decisão logo na nossa primeira reunião com as diretorias e os conselhos da EBP-Rio e do ICP: que faríamos estas Jornadas conversarem com o XXV EBCF, para garantir a conexão da EBP-Rio com a EBP, e para nos mantermos com referências e leituras condizentes com o trabalho anual proposto pela EBP, podendo nos debruçar sobre o tema e a bibliografia das Jornadas sem cair no excesso de tarefas. Isso nos levou imediatamente ao último capítulo do Seminário 19 de Lacan, intitulado, justamente, “Os corpos aprisionados pelo discurso”, referência de base do Encontro Brasileiro.
Partimos da questão da qual não podemos nem devemos escapar, e que nos mantém no mesmo rastro das Jornadas dos anos anteriores, mas que podemos formular de diferentes maneiras.
Aqui, formulamos com Lacan no Seminário 19: se, “no discurso do mestre/senhor, vocês, como corpos, estão petrificados”[1], como funciona o discurso analítico como o avesso disso?
A petrificação, ele nos diz, é efeito do tamponamento da hiância “entre as funções de discurso e o suporte corporal”[2], e esta hiância entre discurso e corpo é que se faz necessária para localizar a função do semblante. Então, no avesso desse tamponamento, “o analista, como corpo, […], instala o objeto a no lugar do semblante. […] ele nos permite apreender o que vem a ser o semblante”.[3] De um lado, então, a rigidez da estátua de pedra, do outro, o molejo do semblante.
Para isto, segue Lacan, é preciso que o analista se forme em distinguir o enchimento, o tamponamento desse intervalo, dessa hiância. E isto para perceber que o que deve ser introduzido aí, em vez dos “bons sentimentos”, que seriam os instrumentos petrificadores do discurso do mestre (como os olhos da Medusa, poderíamos dizer), “lidamos aqui com outra coisa, que tem nome: a interpretação”.[4] A interpretação, entendo, seria o que requer supor aberto e ao mesmo tempo o que abre o intervalo entre corpo e discurso, fazendo entrar o arejamento do semblante. Podemos vislumbrar aí os efeitos desse arejamento não só para um sujeito, mas também no laço social.
A segunda via diz respeito mais especificamente ao meu percurso, especialmente através das Jornadas de uns anos para cá. E para tentar transmitir algo disso vou me utilizar de um texto que, no entanto, só encontrei a posteriori. Tomara que não seja uma volta grande demais.
Trata-se do curso de Miller de 2008 intitulado em português “Coisas de fineza em psicanálise”. Este curso, assombrosamente atual, parte de uma constatação por parte de Miller de sua responsabilidade na confusão entre psicanálise e terapêutica que rondava o Campo Freudiano na época da explosão dos CPCTs (Centros Psicanalíticos de Consulta e Tratamento). Miller demonstra aqui que a psicanálise pode desaparecer por sua complacência ao discurso do mestre, que invadiria a cidadela da psicanálise como um cavalo de Troia.
Na terceira lição do Curso, Miller se pergunta qual é o afeto que convém ao analista. Seria a fleuma (“comportamento de quem não sente nenhuma emoção ou não deixa transparecer sentimento ou perturbação alguma; frieza, impassibilidade” – dicionário Oxford), próxima demais da apatia? A propósito disso, Miller exemplifica com uma anedota, retirada do livro de uma jornalista, em que “o paciente chega ao consultório do analista, após um acidente muito grave, completamente entrevado, mancando, com um braço na tipoia, uma muleta, o rosto inchado, e o analista, sem dar uma palavra, lhe mostra o divã sem lhe perguntar coisa alguma”. Existem os estereótipos do analista impassível, impassível ao corpo acidentado, impassível aos efeitos das enchentes, impassível à monocromática ao seu redor. Mas não, não é a fleuma o afeto que convém ao analista, diz Miller.
Seria então o entusiasmo o afeto que lhe convém? Nada disso. Primeira surpresa. Eu mesma me vi tantas vezes entusiasmada com a psicanálise, especialmente em espaços coletivos como as Jornadas, especialmente em jornadas dos últimos anos!
Mas, atenção! O entusiasmo, alerta Miller, é um: “Chegamos lá! Pronto!” E onde chegamos? En theos: em Deus. Miller cita Jean-Jacques Rousseau: “O entusiasmo é o último grau da paixão. Quando ela está no seu máximo, vê seu objeto perfeito: ela, então, faz dele seu ideal; coloca-o no céu”. E liga essa frase ao que disse Lacan sobre o objeto a ser levado ao zênite social pelo mestre contemporâneo. Nos aproximamos então da ideia de que o entusiasmo, assim como os bons sentimentos acima, poderia servir ao discurso do mestre tamponando a hiância entre corpo e discurso, isto é, impedindo que o objeto faça sua função de semblante.
Nem fleuma nem entusiasmo, então que afeto convém ao analista, afinal? O desapego, chega Miller. Segunda surpresa. Então temos que desapegar do corpo acidentado, dos efeitos das enchentes ou da monocromática segregadora ao nosso redor?
Miller define o desapego de uma forma muito precisa: “o desapego é a distância que vocês, como analistas, introduzem entre o significante e o significado”.[5] “Ou seja, é reconduzir o significante à sua nudez, ali onde não se sabe o que isso quer dizer para o outro”.[6]
Assim, o analista precisa não saber qual significado um significante tem para o outro. Parece óbvio dito assim, né? E é. Mas ainda assim não é garantido que consigamos fazer isso sempre com todos os pacientes e muito menos no debate político. No debate político, somos ainda mais levados a supor o que é o bom, o que é o mau, o que é o bem, o que é o mal. E não desapegar disso, justamente, já é ser capturado pelo discurso do mestre que petrifica. Já é tamponar essa outra distância, a qual Miller se refere aqui: entre significante e significado.
Enfim, Miller conclui esta lição – e eu também concluo essa fala – desembocando justamente no tema da interpretação. Se não podemos saber o que um significante significa para o outro, não podemos usar a expressão “falar a língua do Outro” sem começar aprendendo a língua do Outro. Partimos do fato de que nos falam uma língua estrangeira. E a forma através da qual podemos aprendê-la é localizando o que a causa. É isso que significa, segundo Miller, o aforismo de Lacan, segundo o qual a interpretação visa à causa de desejo. “Significa que a interpretação visa ao gozo, ao mais-de-gozar, que é o princípio e a mola do sentido […] não se trata de substituir um sentido por outro”.[7]
Chegamos ao mesmo ponto acima, do Seminário 19. A interpretação aponta para a causa, a. E é aí mesmo que produz a distância entre significante e significado, ao mesmo tempo em que depende dela para se efetivar.
Depois dessa volta que precisei fazer, queria concluir dizendo que a escolha do tema e o acento mais generalizado na clínica têm esse objetivo para mim nestas Jornadas. Nem apáticos nem entusiastas, mas sim poder desapegar o discurso do mestre. Digo desapegar o discurso do mestre, porque desapegar do discurso do mestre seria um contrassenso. Desapegar o discurso do mestre como uma forma de arejá-lo, criando hiância em seu interior, já que com ele temos que viver, e com o mal-estar inevitável que isso nos impõe.
Desapegar para despetrificar, ainda que parcialmente.