Paula Legey
O capítulo VI do seminário “O ser e o Um”, de Miller é um texto denso, aliás como esse seminário inteiro, e requer desdobramentos. Miller o fará ao longo do ano de 2011, 2012 e, certamente, isso acontecerá também, no SOL, ao longo desse ano. Sarita conseguiu trazer alguns dos pontos fundamentais. Eu queria trazer aqui algumas questões que me marcaram no texto do Miller e no recorte da Sarita, e que me fizeram pensar no tema que estamos trabalhando nas Jornadas Clínicas da EBP – Rio e do ICP-RJ desse ano, que, como vocês devem saber, tem como tema “A palavra e a pedra- interpretação em análise”. Nossas Jornadas têm como a proposta enfatizar a clínica e especialmente a interpretação, como o que a psicanálise tem de específico com relação aos outros discursos, especialmente o discurso do mestre. O fundamental nessas Jornadas, que o discurso analítico tem de decisivamente diferente com relação aos outros discursos, é que ele, como diz o Lacan, exclui a dominação. O discurso da dominação, por excelência, é o discurso do mestre. Não se trata de se opor ao discurso do mestre, o que seria propor outra forma de dominação, mas de agir a partir de outro lugar, o lugar de objeto.
Quando estávamos pensando o nome das Jornadas eu pensei várias vezes em “O fracasso do Inconsciente”. Talvez fosse um título esquisito e não foi adiante. Mas por que “o fracasso do inconsciente”? Porque o inconsciente, de alguma forma, é o próprio fracasso: as formações do inconsciente, o sintoma, são pedras no caminho, que atrapalham o “bom funcionamento” do eu, um bom desempenho com relação àquilo que se espera de si mesmo. Ao mesmo tempo, é aí que encontramos, não tanto a nossa pedra preciosa, mas o nosso material.
No seminário 11, de onde Miller traz esse debate todo com Lacan sobre o ser, Lacan traz essa ideia do inconsciente como pedra no caminho, como tropeço, como achado, como algo que se abre para voltar a se fechar numa pulsação temporal. Ele diz:
A causa do inconsciente – e vocês bem veem que aqui o termo causa deve ser tomado em sua ambiguidade, causa a ser sustentada, mas também função da causa no nível do inconsciente – essa causa deve ser fundamentalmente concebida como a causa perdida. E é a única chance que temos de ganhá-la.” (Lacan, 1964, p.123).
Então, é nesse sentido, do discurso analítico como aquele que exclui a dominação que estamos esse ano abordando a interpretação, e pelo menos ao que me parece, é nesse sentindo que estamos construindo nossas Jornadas. Nosso esforço é de falar algo sobre esse lugar do discurso analítico, ou transmitir algo desse lugar.
Em outro texto de Miller, publicado como “Uma fantasia, ele diz da prática lacaniana, que ela tem por princípio um “isso falha”, avessa ao discurso do “isso funciona” que, é claro, faz sucesso. E Miller diz que a prática lacaniana exclui a noção de sucesso.
Mas vamos ao texto de hoje, mais diretamente.
– Como, Sarita nos disse, Miller sustenta uma diferença fundamental entre o ser e o existir. Tem um percurso nessa lição do Miller de algo que se passa no seminário 11 para uma construção que só chegou a ter um peso maior no ensino de Lacan no seminário 19, um percurso que vai do Ser ao Um.
Miller conta que, na época do Seminario livro 11, ele interrogou Lacan sobre seu uso do termo ontologia. Ele diz que foi mal interpretado por Lacan, que colocou a palavra ontologia na boca dele, Miller, mas que era usada pelo Lacan em várias ocasiões. Mas não é bem isso que importa agora.
O que é importante é que tem uma tensão nesse texto sobre o lugar da ontologia no ensino do Lacan. Miller diz que o Lacan teve um problema com a ontologia.
Na ocasião do Seminário 11, Lacan recusa o termo ontologia, dizendo que o estatuto do inconsciente é, antes de tudo ético. É uma ética, podemos dizer, porque não existe inconsciente se as formações do Inconsciente não forem lidas como tais. O ato falho é apenas um erro, os sonhos são apenas descargas aleatórias e por aí vai. Mas nesse texto aqui, o Miller diz que há uma ontologia lacaniana, uma teoria do ser em Lacan. Essa ontologia seria congruente com a linguagem em sua vertente de comunicação.
Ao mesmo tempo, Miller fala de uma virada no ensino de Lacan com relação à ontologia, uma mudança de posição que acontece com o seminário 19 e com a noção de Há-Um. Aí Lacan deixa a ontologia em favor de uma henologia. Miller faz essa separação bem didática:
– Ser, do lado da ontologia, da essência
– Há-um, do lado da henologia, da existência
Podemos tranquilamente falar de algo que não existe, a linguagem se presta a isso. Já a existência é também da ordem do significante, mas não é da ordem do sentido, da comunicação.
– Outro ponto: Miller diz que Lacan nos dá o segredo da ontologia, o que aconteceria apenas nesse outro momento de seu ensino, em torno do Seminário livro 19 (Miller fala que Lacan evita dar peso às rupturas em seu ensino, preferindo a ideia de deformações topológicas de seus sistemas, sem descontinuidade).
O segredo da ontologia seria então que o ser não passa de semblante, e mesmo o objeto a é um semblante de ser. Como lembrou Sarita, Miller diz que Lacan joga a toalha com relação ao objeto a quando formula que o objeto a não pode se sustentar na abordagem do real. Ele tentou dizer que o objeto a é real, mas não conseguiu, ele joga a toalha.
– terceiro ponto: Retomando a pergunta da Sarita, “se o objeto da Matemática não se comove pela Retórica, se comove pela lógica?” Miller aproxima o objeto da matemática do real com que lidamos em nossa prática. A pergunta então seria se o real se move pela lógica. E isso nos aproxima de toda a construção de Miller nesse capítulo, e que não é só desse texto, sobre como a palavra pode mover o gozo. E que Sarita localizou como a pergunta fundamental desse capítulo. Inicialmente, quando Lacan, como afirma Miller, atribui o gozo ao imaginário, isso não seria um problema. Mas quando ele opera uma disjunção entre ICS e Isso, e localiza o gozo do lado do real do sintoma, isso se torna um grande problema. A coisa não fala, como pode ser movida?
O objeto a seria o truque inventado por Lacan como resposta à disjunção entre linguagem e gozo, um artificio. Nesse sentido o objeto não é tanto a pedra no caminho, mas uma solução. Mas o objeto a é um semblante de ser. O que se trata quando se toca no Um não é da ordem do ser. E não pode ser tocado pela linguagem como significação. Isso nos leva ao último ponto
-A interpretação é da ordem da fala, mas não apenas. É também da ordem do silêncio.
A interpretação seria da ordem da Retórica? Não me parece. E apesar de ter aproximado a operação analítica da retórica quando afirma que o psicanalista tem que se haver com uma coisa que se comove por meio da fala, isso se refere a um momento no ensino de Lacan anterior à cisão entre ICS e Isso, e anterior à revelação do segredo da ontologia, de que o ser não passa de semblante.
Então alguma coisa se comove por meio da fala, mas não tudo. Quando estamos avisados desse limite do ser, quando o Um da existência que tem como material o gozo se mostra rebelde à significação, como o objeto matemático, então precisamos dar adeus à retórica.
A interpretação ocupa um lugar de litoral, conjugando palavra e pedra, gozo e linguagem, na medida em que, ao mesmo tempo que opera com a palavra, está avisada do silêncio, Miller diz, isso está no argumento das nossas jornadas, que ela vale pelo que guarda de silêncio. A interpretação se serve da palavra em sua materialidade de gozo. A interpretação vale tanto pelo sentido, mas pelo limite. Nisso ela estabelece uma orientação. E uma orientação em torno desse silêncio do real. Como o real nos orienta?