Ana Beatriz Zimmermann Guimarães
Gostaria primeiramente de agradecer o convite do conselho da EBP-Rio, especialmente a Andréa Reis. Para mim é uma satisfação e um entusiasmo compor essa mesa ao lado da Andréa, Maricia, Rômulo, que nos assiste pelo Zoom, e com vocês no Seminário de Orientação Lacaniana.
Como comentar um texto tão bem escrito, como o da Maricia, no qual ela articula com precisão os textos do Miller (a lição 11 do “O Ser e o Um”) e do Ram Mandil (“Trauma e acontecimento de corpo”)? Não se trata de dar nem a última palavra, nem acreditar na totalidade de uma última versão de um texto, nem dizer algo necessariamente original, mas sim de tentar contribuir com uma discussão que já está acontecendo em nossa comunidade.
Antes de adentrarmos nos textos mencionados, gostaria de retomar algumas frases que escutei na última preparatória que ocorreu no dia 17 de agosto, rumo ao próximo Encontro Brasileiro de Campo Freudiano, que acredito que possam contribuir com o nosso trabalho de hoje e com o tema das nossas Jornadas: “A palavra e a pedra: interpretação em análise”.
Agradeço a Ana Thereza e Marcus pelos comentários da preparatória que retomo a seguir:
Se Ser e Um estão em planos distintos, como conectá-los? Sem os ditos e o enredo, não é possível se aproximar do que itera. A interpretação como acontecimento pode resguardar o lugar do impossível da complementariedade (da não relação sexual) e isso incide nos discursos. E acrescento: incide no laço social. Formulo: em nossa operação, a analítica, se trata de produzir um dizer do real da não relação sexual. Como traduzir isso ao mundo sem nos aprisionarmos na repetição dos conceitos?
Marcus nesse dia destacou a importância de circunscrevermos de que binarismo falamos e penso ser importante não ficarmos no binarismo do Ser ou Um. E o mais precioso, segundo Marcus, a meu ver: não somos heróis do furo, furando o discurso do mestre. Gosto de pensar no conceito de letra na via de que ela sustenta, circunscreve o Um do gozo de cada ser falante. Quais são as letras privilegiadas que compõem a gramática pulsional daqueles que nos procuram? Essas devem ser produzidas durante uma análise. A intepretação é ação por excelência onde essas letras podem ser apontadas, destacadas, durante uma análise. Discurso analítico é uma ação e assim incide no coletivo, nas cidadezinhas que cada ser falante carrega com seus corpos pelas ruas.
Maricia destaca em seu escrito que hoje nos propomos a passar do Ser ao Um. No momento de produzir o mosaico analítico, como bem nos recorda Maricia, não usamos primeiro a nossa argamassa como sujeitos e nem, segundo, fazemos desaparecer a fenda que essas pedras mosaicas produzem ao se unirem. Quebra-cabeça mosaico que nunca se completa, que não tem o S2 que daria o último sentido ou a peça que faria o encaixe perfeito.
Diz ela: “Nosso rejunte no universo analítico é de outro tipo; ele se coloca entre duas dimensões heterogêneas, desniveladas, que para se articularem exigem a presença de um vazio que permita a circulação entre elas, espaço em que o analista se posiciona, espaço para a interpretação e para o objeto”.
Com relação a esse ponto levantado por Maricia, destaco uma frase de minha colega de coordenação de Jornadas, Isabel do Rêgo Barros, na noite de lançamento das Jornadas, que conversa com o que sublinhou Maricia: “A interpretação, entendo, seria o que requer supor aberto e, ao mesmo tempo, o que abre o intervalo entre corpo e discurso, fazendo entrar o arejamento do semblante. Podemos vislumbrar aí os efeitos desse arejamento não só para um sujeito, mas também no laço social”. Abrir mão da necessidade não é produzir esse arejamento?
Maricia destaca a passagem precisa do texto do Miller: “Diga-me sem floreios o que você pensa, sem fazer arranjos, de um jeito bruto, de algum modo selvagem”. “O que assim você disser, seja sua verdade”. Essa verdade é móbil, adorei essa palavra quando a li. Móbil no sentido que é mentirosa, que varia, mas também já é uma pergunta para a Maricia – se esse móbil engendraria a mobilidade necessária, o movimento para irmos então do Ser ao Um do gozo? Essa é a proposta da noite, como frisou Maricia no início de sua leitura.
Agora, destaco um parágrafo de que gostei muito na construção da Maricia, no qual ela coloca a tônica no Um, na existência, mas sem retirar apressadamente os holofotes da verdade mentirosa, ou do deciframento do inconsciente, eu acrescentaria. (Sem, então, resolver um suposto binarismo e, sim, na enunciação de Maricia aparece a valiosa tensão entre esses dois conceitos.)
Nas palavras dela: “A verdade mentirosa é a via de acesso ao real, não vamos a lugar algum sem ela (pelo menos não no campo da neurose)”. Indo rapidamente para o final do texto de Maricia, ela diz: “É preciso passar pelos desvios prometidos pela dialética e pela semântica”. A rota do ser desemboca na fantasia, pelo menos nos casos de neurose, e nos dá um vetor sobre a pergunta do sujeito: quem sou? O ser se articula ao objeto, na construção fantasmática, e assim se inclui no que se supõe ser para o Outro. Dessa montagem fantasmática se extrai uma satisfação.
Já avançando um pouco mais em seu texto, Maricia situa que existe, claramente, algo que vai para além do ser. Na frase de Miller: “[…] o sintoma não é uma formação da fala”. Essa frase é contundente, merece uma pausa. Então, o sintoma vai para além das formações do inconsciente, dos atos falhos, dos sonhos – o que não quer dizer que tudo isso terminou! Isso se trans-formou. Da formação do inconsciente à produção do inconsciente.
Em relação ao UM gozo, Maricia nos diz: “A análise confronta o analisante com o que resta mais além da queda do objeto a, ela o confronta com o Um do gozo” (cap. 11. p. 4). E nos pergunta e, aqui, convido ao debate: “E onde encontramos esse resto mais além da queda do objeto a? Pergunto: esse resto não está de alguma maneira desde o princípio, quando pensado, por exemplo, nesse conceito de acontecimento de corpo? Em que alguns significantes chocam o corpo e marcam uma forma de existir, sempre única, um gozo idiota, o mais singular.
Aqui uma frase que privilegio do texto de Maricia: “O sintoma tomado por essa perspectiva obriga a introduzir a instância da escrita no campo da linguagem devido a sua permanência (cap. 11. p. 4). E isso que permanece depois da verdade é aquilo que inaugura o corpo”. Essa frase não seria uma possível resposta para a pergunta que ela mesma fez acima: “onde encontramos esse resto mais além da queda do objeto a?”. Quando se inaugura um corpo, porque sabemos que não se é um corpo. Ou seja, essa inauguração se dá na medida em que se traumatiza o corpo de forma singular. O que dialoga com o que Maricia destaca da expressão de Miller: “semel factivo”. E nas palavras de Ram no seu texto “Trauma e acontecimento de corpo”: “Esse acontecimento de corpo está associado a um gozo experimentado como desviante em relação a um suposto gozo natural do corpo”. (p. 74).
Maricia se pergunta se é possível acessar aquilo que esfola, esfrega, rala, faz atrito, fura, manuseia a carne? Sem pretender responder, mas já tentando, parece-me que o que esfola é esse gozo opaco para qual o analista dá lugar e traduz por um triz ao anunciar ao sujeito os S1s que estão vetorizados por esse gozo, que o sujeito sabe sem saber. Lacan ensina no Seminário 20: “A experiência analítica encontra aí seu termo, pois tudo o que ela pode produzir, segundo minha escrita, é S1” (p. 126).
Parece-me ensinante a diferenciação que Ram faz entre: as diferentes versões para o mesmo acontecimento. Maricia já comentou cada uma das versões e apenas reitero que se trataram da “necessidade de introduzir um elemento no interior do outro”. A contingência que, com a montagem fantasmática, vira um destino necessário e que se cria o Outro cruel para não deixar o vazio aberto, pulsante. “Não há um vazio em meu corpo, eu mesmo o habito, na forma do clandestino”. Também destaco a interpretação do analista que aponta para a mochila: “Eis a mochila (sac à dos) do clandestino, sempre pesada. Esse aponta me parece importante, o corpo do analista entra apontando, junto com as palavras e, como ensina Lacan, “perturba a defesa”.
Ram formula dessa forma: “[…] um impacto sobre a defesa”. Um apontar para a mochila pesada. Entretanto, não seria precisamente com o gesto do analista apontando para o vazio/Um do gozo singular? Assim também com esse gesto, significante e corpo se encontram. Perturbação da defesa que lhe permitirá leveza e uma plasticidade ao saco, ao corpo. Não mais o automatismo do S2 – “há um vazio em seu corpo e ele deve ser preenchido”.
Perturbar a defesa é um outro estilo de interpretação? É ir para além da interpretação? Reconfigura a interpretação de alguma maneira? Talvez possamos nos aprofundar melhor nesse ponto nas próximas Jornadas. Por agora, vou me estender só em um ponto. Se a interpretação recai sobre o que foi recalcado e, assim, simbólico, a defesa, tem a ver com o gozo e perturbá-la significa que o analista faça aparecer o real desse gozo em jogo. E do lado do analisante se trata de consentir com o sem sentido do sintoma, com o não todo desse gozo, com o vazio singular.
Então, para acessar esse gozo disse Lacan: “[…] não existe meio de fazer de outro jeito do que receber de um psicanalista o que abala sua defesa”.[1] A defesa qualifica a relação inaugural do sujeito com o real”. A defesa me pareceu uma pedra preciosa, já em Freud, que é uma maneira de lidar com o quantum de energia que vai para além da representação. Para perturbar a defesa é preciso mais do que palavras. É preciso que o analista opere com o próprio corpo como agente do trauma. Perturbar a defesa seria uma forma de destacar, em cada análise, a pedra impossível de negativizar?
E aqui destaco o que, a meu ver, é uma das frases mais importantes do texto de Maricia: “Vejam [que] o Um que estamos perseguindo ao longo deste ano se apresenta aqui, portanto como vazio. Não um vazio qualquer. Um vazio que faz parte, que está lá presente; um vazio que existe como presença não contável. É isso o acontecimento de corpo”.
Então, trata-se de um vazio não contável, já que não entra nos discursos, mas que se transmite. Vazio não contável no conjunto, apenas como subconjunto. Aqui, temos então o UM e o vazio articulados. Para mim essa forma que Maricia articulou ressoou como nova. O vazio como cheio de gozo, de algo de vida que não cabe no relato da vida, um vazio presente, não qualquer vazio, como lembrou Maricia.
Jacques-Alain Miller em seu curso “Todo mundo é louco” (2015) nos diz:
Como interpretamos o que ocorre dentro do que se costuma chamar uma situação, um dispositivo ou uma experiência? Tudo isso é a interpretação da psicanálise. A obra de Freud, o ensino de Lacan, é da ordem da interpretação da psicanálise. É um fato notável, massivo, evidente, tanto em Freud como em Lacan, que esta interpretação se transforma ao longo do tempo. […] Freud não parou de produzir artigos, livros e conferências em um contínuo movimento. E esse movimento se acentuou com Lacan, quem se obrigou a interpretar a psicanálise semanalmente durante 30 anos, sem nunca depor as armas e nem dizer, já está, chegamos ao destino. […] Interpretar a psicanálise com o passe, sem dúvida, é a maior interpretação que deu à psicanálise. Interpretou que a psicanálise deveria ter um final, que permitiria passar do registro da palavra ao registro do gozo […]. (MILLER, 2015, p. 228)
Miller, na conferência de encerramento da I Jornada de Psicanálise, de Valência[2] em 1993, insistiu que nós analistas “não temos forma”, dessa forma, estamos disponíveis para a fantasia dos pacientes e abertos à contingência do novo.
Leonardo Gorostiza em seu texto “O gnômon do psicanalista” (Opção Lacaniana online, ano 2, número 4, março 2011) diz:
Acredito então que podemos afirmar que o gnômon do psicanalista – singular a cada análise – não passa de um significante-mestre do gozo produzido na experiência analítica. Como tal, ele não se reduz ao falo imaginário, ao -phi correlato à ficção da lei edipiana. Essa produção, que difere da forma que se repete nas formações do inconsciente transferencial, é o que ocasiona uma eficácia “advertida” do sujeito, advertida – do impossível “calçamento” que há entre o verdadeiro e o real.
Adorei a expressão “eficácia advertida” do sujeito, não se tropeça já no mesmo lugar.
O produto do inconsciente não conserva a forma, difere da formação do inconsciente. O produto, então, se trans-forma, não estava anteriormente no Outro. Não há calçamento entre verdadeiro e real, entre Ser e Um. Mas paradoxalmente, penso, ao mesmo tempo que pergunto, se podemos dizer que há uma articulação entre Ser e Um, pois algo do Um passa a estar de alguma forma no laço social em um segundo tempo. Por exemplo, o produto “clandestino” já é algo que repetimos. Ainda que se repita (nos testemunhos, hoje à noite), podemos pensar que origina uma relação completamente diferente com a necessidade, ou seja, uma nova relação com a repetição, como nos demonstra Ram.
Para concluir, como saldo de saber, fica para mim que nós, analistas, podemos produzir da boa maneira, arejada, a eficácia advertida dos sujeitos.