Elisa Werlang
O pintor holandês Hieronymus Bosch na virada dos séculos XV e XVI, como era comum em sua época, tomou como tema uma operação que sobrevive até hoje em nossos tempos. Nela, alguém que se apresenta como cirurgião produz um corte superficial e simula a retirada de uma pedra. Se antes havia um louco de pedra, agora temos um homem de um lado e a pedra do outro.
Para que essa operação seja eficaz, é necessário crer no cirurgião. Mas não só. É necessário acreditar que a loucura possa ser localizável. E que pode e deve ser extraída. O que torna o quadro de Bosch diferente de seus contemporâneos, motivo pelo qual Foucault o analisa em História da loucura, é que Bosch ridiculariza as figuras do cirurgião e dos seus assistentes. E, principalmente, porque nele, o que é extraído não é uma pedra, mas um bulbo de tulipa. Isso é, donde pode advir uma flor.
A poeta argentina Alejandra Pizarnik é uma das que foi tocada pelo quadro do pintor, fazendo desse um longo poema que dá título a um dos seus últimos livros. Ali um momento de virada na sua escrita, mas também o fechar de uma porta. Em carta para uma amiga, ela escreverá que sente que, depois desse livro, não escreverá mais textos aturditos e alucinados – “Me lamentar? Não, afronto as mudanças e suas terríveis consequências”. Ali um longo poema de uma dor audível. Aqui a pedra extraída, “seu único privilégio”.
Essa não foi a única virada em sua escrita. Nos seus primeiros poemas, ela era marcada por versos que chamavam outros versos, como se faltasse uma palavra e onde o poema mergulhava para um dizer que não se conclui. Há depois um segundo tempo que se inaugura e ainda está presente em A extração da pedra da loucura, no qual o poema se faz em linha reta. Onde o verso é um poema e o poema se faz pela inclusão de poemas.
Tomando o livro que o precede, Os trabalhos e os dias, sua escrita se caracterizava pela presença dos poemas breves. Teoremas não matemáticos, como chega a nomear seu tradutor Davis Diniz. Como em “Poema”, título do poema que abre esse livro, a exigência da pureza parece atravessar a escrita, produzindo versos concisos, rigorosos, límpidos: pedras preciosas. A palavra se cristaliza em sua instabilidade sem nunca terminar de se dizer. O poema é silêncio perfeito e grito dilacerante. A presença repetitiva de alguns significantes vai se decantando, produzindo um efeito de saturação significante, que, ao invés de produzir um sentido unificador, signo, produz polifonia. Como água abraçando uma pedra e suas ressonâncias. Seguem alguns poemas desse livro no qual se precipita o silêncio e a voz; a presença e a ausência; a matéria pedra.
“Tua voz”
Emboscado na minha escritura
cantas em meu poema
refém de tua doce voz
petrificada em minha memória
pássaro preso à sua fuga.
ar tatuado por um ausente.
relógio que pulsa comigo
para que nunca desperte
“Presença”
tua voz
neste não poder arrancar as coisas
de meu olhar
elas me despossuem
fazem de mim um barco sobre um rio de pedras
se não é tua voz
chuva abandonada em meu silêncio de febres
tu me desatas os olhos
e por favor
que me fales
“Desmemória”
Ainda que a voz (seu esquecimento
vertendo-me naufragas que sou eu)
oficia em um jardim petrificado
Recordo com todas as minhas vidas
Por que esqueço
O que desaparece em A extração da pedra da loucura é a palavra exata. O poema se esparra pela página. Como água sobre a pedra, numa deseconomia de palavras. Elas não faltam. Excedem. Ou, como já disseram, o poema te arrasta para dentro dele, sem garantia de chegar à outra margem. Ali uma dor dilacerante. Onde a voz do poema faz barreira ao silêncio da morte. E onde o silêncio do poema faz barreira à voz da morte. Um poema que vale a pena ouvir.
Extracción de la piedra de locura, Alejandra Pizarnik (Parte 1)
Extracción de la piedra de locura, Alejandra Pizarnik (Parte 2)