A interpretação não é uma questão, não é um talvez; é a afirmação de um “há” e na extremidade de um “não há”. Trata-se menos de mostrar alguma coisa do que de uma ausência, que é de estrutura: impossível de dizer.
Miller, J.-A. A palavra que fere. Opção Lacaniana, n. 56/57, 2010.
A extração nas palavras das pedras da interpretação
Nos séculos XVI e XVII, nos Países Baixos, existia um procedimento farsesco, uma “cirurgia” em público, uma grande encenação, conhecida como retirada da pedra da loucura. Esses espetáculos foram retratados por vários artistas da época – Pieter Huys, Pieter Bruegel, Pieter Quast, Hieronymus Bosch. A mais conhecida delas está no Museu do Prado, realizada entre 1475-1480 por Hieronymus Bosch, uma obra pictórica incluída em um conjunto de obras burlescas e satíricas, que se chama A extração da pedra da loucura. A proposta deste comentário é, utilizando essa “extração da pedra” como método, propor um outro sintagma – a extração nas palavras das pedras da interpretação.
Essa extração é comum a todos nós, que a tudo interpretamos. Somos verdadeiras máquinas de interpretar, máquinas de extração nas palavras das pedras da interpretação, serão máquinas paranoicas? A “pedra” da interpretação, como comenta Tarrab: “[…] é retirada entre o delírio e a ficção. Sempre o resultado de nossa debilidade mental, frente ao abrupto da existência, como dizia Lacan, ‘frente ao real, o mental é débil’”.[1]
As pedras da interpretação, extraídas das palavras, continuando com Tarrab à minha maneira, quando se tratam de interpretações analíticas, elas encontram-se tanto do lado do deciframento quanto do lado do ciframento. O que a extração das pedras da interpretação na psicanálise faz é “reduzir, devastar, enfraquecer, desinflar, reduzir ao essencial, o delírio ou a ficção”.[2] Onde colocamos a interpretação? Do lado do decifrar ou do cifrar? A escolha é de cada analista a cada momento. Como Miller enfatiza no artigo citado: “[…] a interpretação não é possível [de] ser ensinada, copiada, repetida, a interpretação não é matematizável”. O que Tarrab conclui: frente à interpretação somos todos principiantes.[3]
Nem todas as pedras da interpretação retiradas das palavras são elementos de um conjunto, algumas são cifras, são partes, não são elementos de um conjunto. São tigres azuis como extraiu Borges no conto com este título.
Borges escreve que um professor de lógica, estudioso de Spinoza, que gosta de tigres e sonha frequentemente com eles, sonhou com tigres azuis – “Tigres de um azul que jamais havia visto e para o qual não encontrei a palavra justa”.[4] Um professor escocês que se muda para a Índia, um outro mundo dentro do mundo. Ele encontra nas selvas da Índia, um outro mundo dentro de um outro mundo, dentro de um mundo. Lá no delta do Ganges, em uma aldeia na selva. Mais precisamente em uma colina, ao lado dessa aldeia, habitam os tigres azuis. Nessa colina ele encontra o azul brilhante dos seus sonhos, aqueles para os quais não encontrou palavra justa, mas não são tigres, são pedras azuis. Pequenas pedras circulares, todas iguais azuis que brilham na escuridão. Em um ímpeto, apanha um punhado delas e as coloca no bolso. De volta à sua casa examina o monte de suas pedras, resolveu contá-las. Conta feita, contou-as novamente, e de novo; o resultado nunca é o mesmo. As pedras se multiplicam e se dividem alheias às leis da física. A contínua e incessante contagem das pedras apura inúmeros resultados diferentes que vão de 3 pedras a 417 pedras. “Eu olhava fixamente para uma delas, recolhia-a com o polegar e o indicador e depois de separada ela ficava sendo muitas.”[5]
Essas pedras azuis que algumas vezes extraímos, enquanto analistas, “que lemos no que se diz”, que lemos no ciframento da fala. Essa escrita que implica a homofonia, a gramática e a lógica, mas não a lógica aristotélica, com seu princípio da não contradição. Essas pedras azuis incontáveis, que não são elementos de um conjunto, mas partes de um conjunto, abrigadas no conjunto vazio. Presentificados pela letra, os tigres azuis aparecem, não elementos de um conjunto, situados no conjunto vazio, um conjunto que não possui elementos.[6]
Uso, como vocês já perceberam, essa bela ficção de Borges, para falar do real, para falar do gozo, do puro real, na expressão de Horne, o existir.[7] Este existir, essa substância gozante apontada no sintagma tigres azuis. “Onde está o real em meio às criaturas das palavras que a psicanálise convoca?”, pergunta Tarrab, citando Miller.[8]
Horne se pergunta: “[…] como se pode estabelecer um gozo sem significante, um puro existir, no âmbito de uma operação simbólica?”. E continua citando Lacan no Seminário 20: “[…] o que só existe ao não ser. O significante paga com seu ser de significante pelo direito de existir. […] Um existir que não é o de significante, mas de puro gozo, uma substância gozante.”[9]
E é Miller que enuncia: interpretação analítica é apofática[10], do grego apóphasis ou apóphemi, isto é, algo sem predicados. Enunciar a interpretação analítica como apofática é uma tentativa de descrevê-la como o que ela não é. Ou a impossibilidade de dizer o que ela é. Fazer da linguagem expressão visível do invisível. A imagem de uma experiência que culmina na ausência de toda imagem, na exclusão de qualquer mediação.[11]
Algo que “é de Estrutura impossível de dizer”.