Ana Martha Wilson Maia
A interpretação e os sonhos já estavam lá, desde o início, inclusive no título do texto inaugural “A interpretação dos sonhos”, com o qual Freud apresenta sua grande invenção, a psicanálise. Em suas elaborações não só sobre os sonhos, mas as formações do inconsciente, aprendemos com ele que a interpretação é um trabalho de leitura.
Anos mais tarde, é Lacan quem traz uma expressão muito precisa, no Seminário 4: a relação de objeto, referindo-se aos sonhos de Anna Freud e de Hans: trata-se de “saber ler” (1995, p. 331). No Seminário 6: o desejo e sua interpretação, no capítulo dedicado ao sonho de Anna, ele ressalta o trabalho que a menina fez com os significantes, em uma série de nomeações, e sublinha que, nessa verdadeira topologia de significantes que se encontram floculados, uma escrita do sonho deve ser buscada “muito mais na forma das letras do que no sentido do texto” (2016, p. 81).
De que conceitos dispomos para fazer esse trabalho de leitura? São os mesmos instrumentos teóricos que Freud apresenta em sua obra e Lacan em seu ensino?
Em A fuga do sentido, Miller organiza alguns termos que Lacan propõe em seus escritos e seminários, o que nos possibilita pensar que modo nos servem de orientação na prática analítica, hoje.
Miller coloca palavra, linguagem e letra do lado esquerdo de uma tabela e aparola, lalíngua e lituraterra, do lado direito. Esses três primeiros termos estão no título de dois textos de Lacan dos anos 1950: “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. Ou seja, fazem parte do que chamamos o primeiro Lacan e correspondem ao tempo do inconsciente estruturado como uma linguagem.
Já os outros três – aparola, lalíngua e lituraterra – são neologismos inventados por Lacan, nos anos 1970, quando descreve a linguagem não mais como uma estrutura, mas uma elocubração de saber sobre lalíngua.
Não é à toa que ele aborda esse giro num curso sobre a fuga de sentido. Eu me deterei, brevemente, na letra/lituraterra e em lalíngua, para enfatizar que os efeitos desse giro são de um grande alcance clínico, visando o tema de nossas Jornadas deste ano: a interpretação.
Diferente de lalíngua, apresentada nos anos 1970, a letra atravessa o ensino de Lacan, desde o começo, quando ele a introduz sublinhando a determinação do simbólico no inconsciente.
No primeiro Lacan, temos a letra em sua dimensão de materialidade do significante, como podemos situar no texto de 1956 sobre “A carta roubada”, conto de Edgar Allan Poe, e no texto sobre a instância da letra, de 1957. E, a partir dos anos 1970, com o neologismo lituraterra, temos a segunda versão da letra que Lacan apresenta em sua dimensão de litoral.
A partir da releitura do que havia desenvolvido sobre a letra e a carta roubada no seminário De um discurso que não fosse semblante e sobre o equívoco de Joyce que desliza “de a letter para a litter, de letra/carta para lixo” (2009, p. 15), Lacan marca a diferença entre letra e significante e, com a introdução do semblante, ele vai além da função simbólica da letra para cernir o real.
Em sua segunda viagem ao Japão, Lacan teve a oportunidade de observar o deserto da Sibéria e avistou os sulcos na terra deixados pelas águas. “O que se evoca de gozo ao romper um semblante, é isso que no real se apresenta como ravinamento das águas.” (2003, p. 22). Ele aponta esse mesmo efeito na letra: a escrita é um ravinamento, não de águas, mas de sentido.
Nas palavras de Laurent: “Temos, portanto, a cada vez, inscrição e traço de alguma coisa que é primária e que ultrapassa todas as significações em jogo, esse acolhimento do gozo na letra, na escrita, que vem se inscrever” (2010, p. 71). Assim, a letra evoca o gozo, é litoral, pois desenha a borda do furo no saber.
Com “Lituraterra” (1971), Lacan circunscreve a escrita e sustenta que “a literatura é uma acomodação de restos” (2003, p. 16). Uma análise é também uma acomodação de restos, do que fez o parlêtre, a partir das intervenções do analista, das interpretações pela via da letra. É neste ponto que chego ao segundo termo que destaco no quadro de Miller: lalíngua.
Lacan apresenta lalíngua, no Seminário 20: mais, ainda e, com ela, uma nova definição da linguagem. A definição do inconsciente estruturado como uma linguagem está articulada ao desejo e à sua verdade. A partir de lalíngua, essa definição do inconsciente é deslocada para a dimensão do gozo, enquanto substância que dá vida ao corpo. Daí, a linguagem ser uma elocubração de saber sobre lalíngua.
Lalíngua é uma massa sonora que, no encontro com o corpo, faz trauma, deixando nele uma marca de gozo. “Lalíngua nos afeta primeiro por tudo o que ela comporta como efeitos que são afetos” (1985, p. 190). A articulação do afeto a um significante circunscreve um modo de gozo singular, de tal forma que não se tem outro uso a fazer deste, a não ser este mesmo: gozar. Por isso, Lacan diz que lalíngua não serve para a comunicação, para fazer laço.
Miller já havia ressaltado, em Os signos do gozo, a passagem no ensino de Lacan da ênfase do Outro para o Um, em que o prévio não é o Outro, mas o gozo, o Um. Lalíngua é anterior à linguagem. Em A fuga do sentido, ele afirma, com Lacan, que a partir de lalíngua, não há comunicação, não há Outro, mas “há autismo” (2012, p. 150). Essa ideia fundamenta o que ele propõe, em O ultimíssimo Lacan, numa homenagem a Rosine e Robert Lefort pelo esforço de mostrarem “como o Outro é construído a partir do Um-corpo” (2013, p. 119). Miller diz que foi nessa clínica do Um-corpo que eles criaram o autismo como uma categoria clínica e que mostraram que o autismo é o estatuto nativo do ser falante.
Podemos verificar em uma análise – e o testemunho de passe de Bruno de Halleux (2012) é claríssimo para isso (Maia, 2023) – até onde vão os efeitos de lalíngua. Destacar restos enigmáticos, um indizível que insiste, que itera (Miller, 2011). As marcas deixadas por lalíngua no corpo reaparecem “nos sonhos, em todo tipo de tropeço, em todo tipo de formas de dizer.” (Lacan, 1975, p. 10).
A interpretação não é um conceito que surgiu com a psicanálise, mas indiscutivelmente a definição dada por ela é inédita. Esse giro que Lacan dá a partir da letra/lituraterra e de lalíngua promove um deslocamento da definição de linguagem como estrutura para linguagem como um aparelho de gozo, o que resulta numa mudança no lugar da interpretação na experiência analítica.
Miller diz, em A fuga do sentido, que é possível construir uma estrutura e decifrá-la, e que a estrutura possui a finalidade de conhecimento da realidade, enquanto que a função do aparelho está relacionada ao gozo (2012, p. 155). Ele enfatiza que, deste modo, nós “desalojamos o infinito da interpretação” (2012, p. 156), porque quando ela visa o sentido, não produz limite. A interpretação na via do sentido relança, infinitiza.
Na direção contrária, esse giro de Lacan apresenta a interpretação como uma prática que deixa descoberto o vazio central da linguagem, com a redução do isso quer gozar para isso não quer dizer nada. Nessa perspectiva, a interpretação faz limite, é mais uma contenção do que relançamento, porque não é o sentido que é assegurado pela interpretação, mas o real.
Para concluir, a interpretação está do lado da escrita, do furo do sentido, do impossível e reconduz o parlêtre à opacidade de seu gozo. “A interpretação é uma leitura” (Miller, 2011).