Opção Lacaniana, n. 79, julho 2018., p.60, São Paulo, Eólia.

“Para dar conta da eficácia da interpretação, Lacan acaba formulando a existência de um efeito de sentido real. […] Essa interpretação não é da ordem de uma tradução por acréscimo de um S2 em relação a um S1. É a interpretação que não visa à concatenação ou à produção de uma cadeia significante.” LAURENT, Éric. “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”.

 

Miller, J-A. “A Palavra que fere”. Opção Lacaniana, nº 56/57, 2010.

A interpretação não é uma questão, não é um talvez;é a afirmação de um “há”e na extremidade de um “não há”. Trata-se menos de mostrar alguma coisa do que de uma ausência, que é de estrutura: impossível de dizer.

 

Comentário por: José Marcos Moura (EBP/AMP)

A extração nas palavras das pedras da interpretação.

Nos séculos XVI e XVII, nos países baixos, existia um procedimento farsesco, uma “cirurgia” em público, uma grande encenação, conhecida como retirada da pedra da loucura. Estes espetáculos foram retratados por vários artistas da época,  Pieter Huys, Pieter Bruegel, Pieter Quast, Hieronymus Bosch. A mais conhecida delas está no museu do Prado, realizada entre 1475-1480  por Hieronymus Bosch, uma obra pictórica incluída em um conjunto de obras burlescas e satíricas, que se chama “A extração da pedra da loucura”.A proposta neste comentário é, utilizando este “extração da pedra” como método, propor um outro sintagma,  a extração nas palavras das pedras da interpretação.

Esta extração, é comum a todos nós, que a tudo interpretamos. Somos verdadeiras máquinas de interpretar, máquinas de extração nas palavras das pedras da interpretação, serão máquinas paranóicas? A “pedra” da interpretação, como comenta Tarrab, é retirada entre o delírio e a ficção. Sempre o resultado de nossa debilidade mental, frente ao abrupto da existência, como dizia Lacan, “frente ao real, o mental é débil”.[1]

As pedras da interpretação extraídas das palavras, continuando com Tarrab à minha maneira, quando se tratam de interpretações analíticas, elas encontram-se tanto do lado do deciframento quanto do lado ciframento. O que a extração das pedras da interpretação na psicanálise faz é “reduzir, devastar, enfraquecer, desinflar, reduzir ao essencial, o delírio ou a ficção”[2]. Onde colocamos a interpretação? Do lado do decifrar ou do cifrar? A escolha é de cada analista a cada momento. Como Miller enfatiza no artigo citado “a interpretação não é possível ser ensinada, copiada, repetida, a interpretação não é matematizável” o que Tarrab conclui : frente à interpretação somos todos principiantes.[3]

 Nem todas as pedras da interpretação retiradas das palavras são elementos de um conjunto, algumas são cifras, são partes, não são elementos de um conjunto. São tigres azuis como extraiu Borges no conto com este título.

Borges escreve que um professor de lógica, estudioso de Spinoza, que gosta de tigres e sonha frequentemente com eles, sonhou com tigres azuis, “Tigres de um azul que jamais havia visto e para o qual não encontrei a palavra justa”[4]. Este professor escocês que se muda para a Índia, um outro mundo dentro do mundo. Encontra nas selvas da Índia, um outro mundo dentro de um outro mundo, dentro de um mundo. Lá no delta do Ganges, em uma aldeia na selva. Mais precisamente em uma colina ao lado desta aldeia, habitam os tigres azuis. Nesta colina ele encontra o azul brilhante dos seus sonhos,  aqueles para os quais não encontrou palavra justa, mas não são tigres, são pedras azuis. Pequenas pedras circulares, todas iguais azuis que brilham na escuridão. Em um ímpeto, apanha um punhado delas e as coloca no bolso. De volta a sua casa examina o monte de suas pedras,  resolveu contá-las, conta feita, contou-as novamente, e de novo; o resultado nunca é o mesmo. As pedras se multiplicam e se dividem alheias às leis da física. A contínua e incessante contagem das pedras apura inúmeros resultados diferentes que vão de 3 pedras a 417 pedras. “Eu olhava fixamente para uma delas, recolhia-a com o polegar e o indicador e depois de separada ela ficava sendo muitas.”[5]

Estas pedras azuis que algumas vezes extraímos enquanto analistas, “que lemos no que se diz”, que lemos no ciframento da fala. Esta escrita que implica a homofonia, a gramática e a lógica, mas não a lógica aristotélica, com seu princípio da não contradição. Estas pedras azuis incontáveis, que não são elementos de um conjunto, mas partes de um conjunto, abrigadas no conjunto vazio. Presentificados pela letra, os tigres azuis aparecem, não-elementos de um conjunto, situados no conjunto vazio, um conjunto que não possui elementos.[6]

Uso, como vocês já perceberam, esta bela ficção de Borges, para falar do real, para falar do gozo, do puro real, na expressão de Horne, o existir.[7] Este existir, esta substância gozante apontada no sintagma tigres azuis. “Onde está o real em meio às criaturas das palavras que a psicanálise convoca?”, pergunta Tarrab citando Miller.[8]

Horne se pergunta: “ como se pode estabelecer um gozo sem significante, um puro existir, no âmbito de uma operação simbólica?”  e continua  citando Lacan no seminário 20, “o que  só existe ao não ser. O significante paga com seu ser de significante pelo direito de existir. (…) Um existir que não é o de significante mas de puro gozo, uma substância gozante.” [9]

E é Miller que enuncia: interpretação analítica é apofática[10], do grego apóphasis ou apóphemi, isto é, algo sem predicados. Enunciar a interpretação analítica como apofática, é uma tentativa de descrevê-la como o que ela não é. Ou a impossibilidade de dizer o que ela é. Fazer da linguagem expressão visível do invisível. A imagem de uma experiência que culmina na ausência de toda imagem, na exclusão de qualquer mediação.[11]

Algo que “é de Estrutura impossível de dizer”.

 

[1] Tarrab, M. “Que interpretacion?” El decir Y lo real. Editora Grama 2023
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] Borges J. L. “Nove ensaios dantescos & a memoria Shakespeare. Cia das Letras
[5] Ibidem
[6] Vieira, M. A. Preparatória para o XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, na EBP Rio de Janeiro. YouTube Canal EBP RIO 2024
[7] Horne, B. “Capitulo 2” O Campo Uniano, Editora Ares 2022
[8] Tarrab, M. “Prologo” O Campo Uniano, Editora Ares 2022
[9] Horne, B “Capitulo 2” ) campo Uniano Editora Ares 2022
[10] Miller, J-A. A Palavra que fere”. Opção Lacaniana, nº 56/57, 2010
[11] (Neoplatonismo e estética apofática: considerações a partir da abstração.  Cunha Bezerra, C. https://www.youtube.com/watch?v=jvy5Ei-IzwY&t=871s

“Não é porque eu disse que o efeito de interpretação é isolar no sujeito um coração, um kern, para exprimir como Freud, de nonsense, que a interpretação é ela própria um nonsense.

J. Lacan. O Seminário, livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 236, 1988.

 

Comentário por: Andréa Reis Santos (EBP/AMP)

 

“Digamos que, no investimento de capital da empresa comum, o paciente não é o único com dificuldades a entrar com sua quota. Também o analista tem que pagar: – pagar com suas palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação:..” [1](pg. 593)

LACAN, J. A Direção do tratamento e os princípios do seu poder (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

 

Comentário por: Glória Maron (EBP/AMP)

Palavra e linguagem são dois termos chave do ensino inaugural de Lacan e estão presentes no escrito “Direção do Tratamento e os princípios do seu poder”. Esse texto, conserva a sua importância e atualidade para a orientação da prática do analista, quando Lacan retorna a Freud para abordar o fundamento da palavra na experiência analítica. Lacan amplifica o que costumamos no dia a dia sustentar: a experiência analítica opera pela palavra. Longe de ser uma relação dual, a palavra é um elemento importante na situação analítica, dominada à época desse escrito, pela vertente imaginária na prática analítica dos pós-freudianos. Nesse texto, no que tange à interpretação enquanto tática, Lacan sustenta que o analista se apresenta mais livre quanto ao momento, ao número e à escolha de suas intervenções. Todavia, para que a palavra do analista possa adquirir efeito de interpretação, adverte Lacan, a transmutação da palavra não é dada pela pessoa do analista, mas é atravessada necessariamente pelo lugar que a transferência confere ao analista[2]. Sua advertência avança na direção de distinguir uma intervenção “esclarecedora”, carregada de sentido e que se coloca a serviço de tamponar e contribuir para o fechamento do inconsciente, de uma interpretação e seu efeito de abertura[3], que preserva que há um indizível na experiência analítica.

Não há regras para a interpretação, mas como aponto o escrito, há princípios que orientam a prática do psicanalista. Podemos deixar em aberto uma afirmação sutil e irônica de Lacan, que, de certo modo, comporta um enigma:“Uma interpretação só pode ser exata se for.. uma interpretação”.[4]


[1] LACN, J. A Direção do Tratamento e os princípios do seu poder. Em: Escritos. Zahar: Rio de Janeiro. 1998. P. 593
[2] ________P. 597
[3] ________P. 599
[4] ________P. 607

“Se nas descrições da técnica analítica se fala tão pouco sobre ‘construções’, isso se deve ao fato de que, em troca, se fala nas ‘interpretações’ e em seus efeitos. (…) Interpretação aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma construção, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu (…)”

Freud, S. (1937). Construções em análise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 23, Rio de Janeiro: Imago, p. 279, 1996.

 

“Há frequentemente uma passagem, mesmo no sonho mais completamente interpretado, que tem de ser deixada obscura; isto se deve a que, durante o trabalho de interpretação, damo-nos conta de que neste ponto existe uma meada de pensamentos oníricos que não pode ser desemaranhada e que, além disso, não acrescenta nada a nosso conhecimento. Este é o ponto central [umbigo] do sonho, o ponto de onde ele mergulha no desconhecido”.

FREUD, S. (1900) A interpretação dos sonhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, Vol V. Rio de Janeiro: Imago, cap VII, p.560, 1996.

Comentário por: Maria Angela Maia (EBP/AMP)

Nesta citação fundamental, Freud verifica a presença de um ponto central — o umbigo do sonho — por meio do qual o sonho se liga ao desconhecido, ali onde falta qualquer representação e de onde se eleva o próprio desejo do sonho. Assim balizado, Lacan trabalha com duas vias da intepretação, uma de amplificação do sentido que se expande tal como o micelium do sonho, outra de redução de sentido, orientada para o encontro com o real por trás da falta de representação. A interpretação buscaria a fala plena, ao invés da fala vazia, que se encontra presa no movimento espiral da demanda metonímica infinita de sentidos. Em suma, a interpretação visaria liberar a petrificação do enunciado no significante e a assunção do desejo escondido atrás das demandas, isto porque visaria o ponto de ausência que causa a própria metonímia do desejo — o objeto causa de desejo.

Com o aforismo “a interpretação deve incidir sobre a causa do desejo”, Lacan designa a causa dos ditos e dos atos do sujeito, ou seja, o que provoca a própria produção de sentido, mas permanecerá inapreensível. Aqui, duas vias de entendimento para a interpretação são possíveis: a primeira, diz respeito ao significante S— significante uniano, sozinho, isolado — que não induz ao sentido, diferenciando-se assim do significante unário que impele à articulação a outro significante S2. A segunda via indica o lugar de um “gozo opaco, por excluir o sentido”, que repercute no corpo sem enlaçar-se a qualquer ordem significante.

Comentário por: Ana Lucia Lutterbach (EBP/AMP)

“A interpretação incide sobre a causa do desejo, como formulei na época [referência à formulação feita na lição de 06/06/62], causa que ela revela, e isso pela demanda, que envelopa com seu modal o conjunto dos ditos” (LACAN, J. O aturdito [1972]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 474).

 

Comentário por: Rodrigo Lyra (EBP/AMP)

“Na medida que o paciente investe o analista, no duplo sentido de investimento e investidura, mais além inclusive do que ele pode saber disso, e lhe endereça um ‘você é meu analista’, este pode lhe responder com um: Eu o sou. A entrada em análise, como escansão, quer ela seja ou não marcada pela passagem para o divã, é uma interpretação”.

Miller, J-A. “Em vista da saída”. Em: Como terminam as análises: paradoxos do passe. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 93.

Comentário por: Angela Batista (EBP/AMP)

“Disso resulta, acrescentei depois, mas sem efeitos, que é em lalíngua que opera a interpretação – o que não impede que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem, uma dessas linguagens nas quais é justamente assunto dos linguistas convencer de que lalíngua é animada”. (p.21).

LACAN, J. A Terceira [1974]. In: Opção lacaniana. Revista Internacional da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 62. São Paulo: Edições Eólia, 2011.

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Coentário por: Marcus André Vieira (EBP/AMP)

“O dizer da análise, na medida em que é eficaz, realiza o apofântico, que por sua simples ex-sistência, distingue-se da proposição. Assim é que coloca em seu lugar a função proposicional, posto que, como penso haver mostrado, ela nos dá o único apoio que supre o ab-senso da relação sexual. Esse dizer renomeia-se aí pelo embaraço que deixam transparecer campos tão dispersos quanto o oráculo e o fora-do-discurso da psicose, através do empréstimo que lhes faz do termo interpretação.” (O aturdito, p. 492)

LACAN, J. O aturdito [1972]. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

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