Angélica Bastos
Maricia Ciscato

Com Freud, aprendemos que as manifestações inconscientes respondem a uma gramática própria e pedem leitura. Em seu extenso trabalho de retorno à razão freudiana, ao longo de todo o primeiro ensino, Lacan aponta que o funcionamento inconsciente está atrelado às leis da linguagem, dando destaque à metáfora e à metonímia para pensarmos o sintoma e o desejo. No Seminário 11, afirma que o significante petrifica o sujeito “pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito”.[1] O significante que petrifica está em ação no discurso do mestre, que funciona pelo simples fato de que há linguagem[2], constituindo o sujeito e produzindo sintomas. É o que constatamos cotidianamente na clínica da neurose, com a apresentação dos sintomas obsessivos, histéricos e fóbicos.

Em nossa clínica e em instituições, acompanhamos, no entanto, o surgimento de sintomas variados que não se apresentam como formação do inconsciente, como metáfora, e que, portanto, não pedem decifração. Tampouco correspondem a expressões típicas das psicoses, como o delírio e a alucinação. São repetições aditivas dentro e fora das redes sociais, hiperatividades, hipomanias, consumo compulsivo de gadgets, imagens e objetos produzidos pela tecnociência que muitas vezes empurram o sujeito para o lugar de dejeto. Independentemente da estrutura clínica, essas manifestações se destacam pelo regime de gozo, que se distingue do regime do desejo.[3] À diferença dos sintomas freudianos clássicos, sempre presentes na clínica, não dispõem de um envelope formal, cujos significantes se desdobram na associação livre.

A partir do Seminário 19, com a formulação “há Um”, Lacan privilegia o que não é de todo capturado pelo discurso[4]: marcas de gozo no corpo que não se rendem aos efeitos de sentido, às decifrações e às construções de uma análise, insistindo tanto no âmbito dos sintomas metafóricos, quanto independentes deles. Como os desafios da clínica atual podem se servir da orientação de que nem todas as inscrições participam do encadeamento significante?

Nossa época é regida pela promessa de um discurso que se propõe sem perdas. O discurso do mestre contemporâneo – discurso do capitalista – captura e tritura os corpos em sua maquinaria sem ponto de parada, rechaçando a castração. Nele, o falasser vive na expectativa de encontrar no próximo objeto o consumo completamente satisfatório, sem restos, posição em que ele próprio passa a ser consumido, nada deixando a interpretar. O discurso de mestre clássico – e os sintomas nele engendrados – persiste e se alterna com os demais discursos e, em especial, com o do capitalista, interrogando o psicanalista sobre a lógica e os efeitos da interpretação hoje.

Por sustentar o impossível da relação sexual e um discurso confrontado ao real de sua época, sem intenção de dominar ou promover a verdade, a presença do analista tende a provocar efeitos de enigma e corte nos falasseres que acolhe em seus consultórios e nas instituições de saúde, educação e outras. A pontuação e o corte no trabalho analítico tocam tanto o sentido quanto o nonsense, visando incidir sobre os sintomas metafóricos, sobre os regimes de gozo das práticas corporais atuais e as marcas de gozo. Como tem se apresentado, na clínica e nas instituições, os sintomas que respondem aos diferentes discursos? O que os psicanalistas testemunham sobre os efeitos de interpretação em suas práticas?

Este eixo acolhe trabalhos que tratem da interpretação e de seu fracasso. Interessa-nos o deslocamento do falasser do discurso do mestre ao do analista, bem como a dificuldade em produzir um ponto de parada no discurso do mestre contemporâneo.


[1] Lacan, J. (1964) O seminário, livro 11: os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 197.
[2] Lacan, J. (1972) Do discurso psicanalítico. Lacan in Italia:1953-1978. Milano: Salamandra, 1978, p. 47.
[3] Miller, J.-A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 233-246.
[4] Miller, J.-A. O ser e o um: curso 2011-2012. EBP-Rio: 2011. 146 p. Documento de trabalho para atividades da Escola Brasileira de Psicanálise. Inédito.