Por Francisca Menta e Paloma Ametlla

A Comissão de Acolhimento e Festa[1], junto com a Coordenação[2] das XXXI Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ intituladas A Palavra e a Pedra – Interpretação em análise, estiveram presentes no Circuito Histórico de Herança Africana, realizado pelo Instituto Pretos Novos. O circuito propõe um percurso pela região conhecida como Pequena África que abrange uma parte da área central do Rio de Janeiro e da região portuária, onde está cravada, em pedras e rochas, a dolorosa história de uma colonização que não ocorreu somente em nosso país, mas em muitos outros em que a escravização foi a forma sistêmica de um processo de dominação e colonização de povos, não somente através da exploração da mão de obra para a construção do novo e sua adaptação, mas, sobretudo, através da criação de uma rota de comércio para enriquecimento dos colonizadores.

A Pequena África inclui a região da Gamboa, onde ocorrerá a festa de celebração e encerramento das Jornadas deste ano. Retomar, aqui, o percurso da herança africana é um resgate da história e da memória material do Complexo do Valongo e dos locais onde se deu o processo sistematizado do tráfico transatlântico, escravização e venda de pessoas de origem africana no Brasil colônia.

O Complexo do Valongo era composto pelo Cais do Valongo – local de chegada da população negra, o pelo Cemitério dos Pretos Novos, o Lazareto – local de inspeção sanitária e quarentena das pessoas que chegavam doentes dos navios, os Barracões – onde as pessoas sadias eram alimentadas e banhadas para serem comercializadas e o Mercado do Valongo – onde ficavam as lojas de vendas dessa população. A região também foi marcada pelos processos de resistência que se deram nas Casas de Zungu, com sambas e angus, no Quilombo da Pedra do Sal e sob outras formas cotidianas, com a construção de brechas de sobrevivência por parte da da população negra escravizada. O Complexo do Valongo foi um sistema de chegada e distribuição dessas pessoas para o restante do país, recebendo cerca de 1 milhão de pessoas sequestradas de diferentes lugares do continente africano, entre 1774 e 1831, configurando um dos maiores locais de desembarque e venda de africanos escravizados no mundo.

De lá para cá, a região sofreu uma série de processos de apagamentos históricos e patrimoniais. Destacamos, aqui, um elemento material que recolhemos em nossa visitação à região: a Pedra Pé de Moleque. Até o ano de 2011, dessa pedra, cuja nomenclatura é rodeada de contos, sem registros formais escritos sobre sua origem que remonta ao trabalho escravagista da época e dessa região, restava apenas em um pequeno trecho, na lateral da Igreja Drº de São Francisco da Prainha. Foi em meio às obras de revitalização e implantação do projeto “Porto Maravilha” para sediar as Olimpíadas que, por acaso ou por ironia, precisando de um porto que estivesse belo e eficiente o bastante para receber os gigantescos navios de cruzeiros, surgiu aquilo que se desejava calar. Eis que, através de uma reconstrução da rede pluvial, foram encontrados artefatos arqueológicos que confirmaram a existência do Complexo do Valongo.  Foi, então, a partir das escavações da região, até então aterrada, que um pedaço de construção feito de Pedra Pé de Moleque foi encontrado e  se deu a ver, ali, o Cais do Valongo, que estava, então, soterrado pela chamada Praça Jornal do Comércio. O Sítio Arqueológico Cais do Valongo foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, em 9 de julho de 2017, por ser o único vestígio material da chegada dos africanos escravizados na América.

Para Lélia González, o caminho das pedras diante do enfrentamento ao racismo que marca e está nas bases originárias da nossa sociedade, é a memória. E, por memória, entendemos, aqui, aquilo que não se sabe, mas se conhece, como esse ”lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”[3], tal qual a emergência da verdade ficcional da falsa democracia racial revelada pela quebradeira que desenterrou as Pedras Pé de Moleque. A autora diferencia a emergência da memória do que seria a consciência, esta segunda como sendo aquilo que se sabe, ou seja, o lugar da alienação, do encobrimento e da subjugação que serve a fins ideológicos. A consciência, portanto, “exclui o que a memória inclui”, através de uma dominação e imposição do que ela considera como a verdade. Lélia afirma que a relação entre a consciência e a memória é uma dialética e diz:

“No que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo pra nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela pra tudo nesse sentido. Só que isso tá aí… E fala.”

A título de curiosidade e para finalizar, aqui, o nosso circuito de pedras e palavras, informamos que em 1831, o Cais do Valongo foi desativado e que em 1843 ele passou pelo seu primeiro processo de apagamento histórico patrimonial, quando foi reformado para receber Teresa Cristina, a futura esposa de D. Pedro II, e rebatizado como Cais da Imperatriz, que, curiosamente, inspirou o nome da casa onde realizaremos a nossa festa de encerramento dessas Jornadas. O Cais da Imperatriz, o original, ao ser construído, deu início ao soterramento das Pedras Pé de Moleque do Cais do Valongo, que ficaram, então, por mais de um século escondidas. Já a casa Cais da Imperatriz, essa possui outra história, embora carregue o mesmo nome, e se localiza no número 145, da Rua Sacadura Cabral. Seu casarão foi edificado em 1956 para servir de cocheira, onde se abrigavam os cavalos das carruagens dos comerciantes que se dirigiam aos trapiches da antiga Rua da Praia. De enorme valor histórico, passou por uma cuidadosa restauração. Com mais de quinhentos metros quadrados e pé direito de seis metros, este imóvel preserva, tanto interna quanto externamente, todas as características arquitetônicas do período, “fin du siecle”.

As casas de Zungu ou casas de angu, serviam de moradia, local para práticas religiosas, festas, capoeira e como esconderijo de escravizados em fuga, onde se comia angus feito por quitandeiras da praia do Peixe como forma de acolher, cuidar dos escravizados e libertos do Rio no século XIX. Formavam uma “comunidade invisível” de solidariedade, onde se criava cultura, religiosidade e ancestralidade. Nas casas de Zungu se celebrava a resistência, a sobrevivência com muita capoeira, tambores e samba, se festejava a vida. A festa é um elemento fundamental para a resistência e luta de um povo como forma de combater a opressão.

O Cais da Imperatriz, estabelecimento que receberá a Quebradeira – a festa para celebrarmos o encerramento de nossas jornadas, fica a exatos 170 metros do Cais do Valongo. Aquelas paredes de pedras são história pura! Com suas marcas de dor e também de festa. Sim, festa! A festa pode ser subversiva e através dela se suporta o incalculável, se solidariza com o outro, se acolhe, se coletiviza. Escavar as pedras, deixá-las falar, num trabalho de arqueologia, interrogação e interpretação de nossa história. Quebrar as pedras, encontrar rachaduras e re-existir nisso que insiste em aparecer, usar das palavras, extrair as pedras do caminho e encontrar a pedra fundamental do desejo. Eis a Psicanálise na cidade. E vamos à Quebradeira!


[1] Comissão de Acolhimento e Festa composta por Daniele Menezes (Coordenação), Francisca Menta (Coordenação), Camila Ventura, Marina Gomorra, Mariana Pucci e Paloma Ametlla.
[2] Coordenação Geral das XXXI Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ intitulada A Palavra e a Pedra – Interpretação em análise composta por Ana Beatriz Zimmermann e Isabel do Rego Barros Duarte.
[3] GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.