Angélica Bastos
Paula Legey
(Coordenadoras da Comissão Científica)

No último capítulo do seminário …ou pior, Lacan localiza um intervalo entre corpos e discursos. Ele nos convoca, enquanto analistas, a nos exercitarmos em distinguir aquilo que obtura o intervalo. No discurso do mestre, apontado por Lacan como sendo aquele do qual somos mais fundamentalmente dependentes, a hiância entre corpos e discursos é preenchida por afetos, mais precisamente, ele diz, por “bons sentimentos”. “No discurso do mestre/senhor, vocês, como corpos, estão petrificados”.[1] No lugar disso que petrifica, do que se apresenta como tamponamento da hiância que existe entre o nível do corpo, do gozo e do semblante e o discurso,[2] Lacan indica o que deve ser introduzido pelo analista: a interpretação.

Convidamos nossa comunidade a submeter a interpretação à análise, discutindo seu lugar diante dos discursos dominantes no laço social.

Em uma primeira aproximação, os significantes que dão nome às próximas Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ estão em oposição. De um lado, a palavra, de outro, a pedra. A palavra como aquilo que se usa no intuito de capturar o real, a pedra como o obstáculo não simbolizável. “Lutar com as palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã”.[3] Assim escreveu Carlos Drummond de Andrade no poema “O lutador(1983). A luta com as palavras de que fala o poeta, podemos entendê-la como sua versão para a impossibilidade de tudo dizer, para um limite na própria estrutura da linguagem. Na álgebra lacaniana, isso ganhou o nome de objeto a, resto impossível de simbolizar, figura do irrepresentável que persiste como presença que perturba. É a pedra no caminho de que falou Drummond em outro poema – “No meio do caminho” –, longamente comentado por Jacques-Alain Miller[4], como um modo de apresentação do real.

Indo um pouco além dessa primeira perspectiva, desfaz-se a oposição. A pedra de que se trata é também a pedra da fala e a palavra não apenas é o modo de acesso ao gozo, mas causa de gozo. Aqui o poema de Olga Savary “Entre erótica e mística” pode nos oferecer uma versão diferente da de Drummond:

Antes que me esqueça,

Poesia, as palavras não só combato:

durmo com elas.[5]

Palavra e pedra se conjugam na interpretação. Miller afirma que o segredo da interpretação é preservar o lugar do silêncio, do que não se pode dizer.[6] Para qualificar o obstáculo último do tratamento analítico, Freud situa no fim do caminho um rochedo, uma pedra. Para ele, essa pedra remete ao sexual. Lacan acrescenta que a pedra pode ser uma pedra preciosa, diamante, como o ágalma.[7] Em uma análise, trata-se de transformar o obstáculo em passagem, fazer algo com o impossível. Uma psicanálise pressupõe que a fala seja uma leitura, ou seja, que o inconsciente se lê e que o analisante aprende a se ler. À leitura efetuada pelo inconsciente se acrescenta a do analista, quando ele faz ouvir nos ditos do analisante o que os ultrapassa.

O termo interpretação não é unívoco: a interpretação traduz, pontua, equivoca, corta. A lista seria longa, pois ela também faz enigma, cita, faz ressoar. Para que haja interpretação não basta perguntar: o que isso quer dizer? A exemplo do que formula Lacan[8] para a interpretação dos sonhos, tampouco é suficiente desdobrar a pergunta: o que ele quer, para dizer isso? – interrogação que remete ao sujeito da enunciação e ao desejo. A satisfação que se encontra no sintoma articulado na fala requer a pergunta: o que, ao dizer, isso quer? A operação analítica responde ao querer dizer e ao querer gozar.

Em uma psicanálise, a interpretação não corresponde à intervenção unilateral do psicanalista, pois o próprio inconsciente interpreta. Se a interpretação analítica duplicasse aquela do inconsciente, a análise – e mesmo a sessão – se tornaria interminável, relançando cada palavra na busca de outra que induzisse sentido. Antes de desvelar um sentido último, ela abre o sentido para o não senso que o habita.

Em sua especificidade, a interpretação lacaniana vai além do sentido sexual, apontando para a não relação. Daí a importância de cernir não só o sentido sexual, mas a satisfação que se extrai da fantasia e o gozo opaco que a excede. Nas próximas Jornadas buscaremos circunscrever os impasses e os efeitos de interpretação em nossa prática psicanalítica, seja nos consultórios, seja nas instituições.

O que a passagem pelo discurso do analista promove em relação aos corpos petrificados pelo discurso do mestre? Se a psicanálise é o avesso deste discurso, ela não o é por se apresentar como solução, mas como contingência que se apresenta na clínica. Gostaríamos, nessas Jornadas, de fazer uma tentativa de verificá-lo.


[1] Lacan, J. (1971-1972). O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 220.
[2] Lacan, J. (1971-1972). O seminário, livro 19: …ou pior, p. 223.
[3] Drummond de Andrade, C. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1983, p. 172.
[4] Miller, J.-A. O osso de uma análise: o inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 10.
[5] Savary, O. Repertório selvagem: obra reunida: 12 livros de poesia, 1947-1998. Rio de Janeiro: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998, p. 215.
[6] Miller, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 11.
[7] Miller, J.-A. O osso de uma análise, p. 28.
[8] Lacan, J. (1968-1969). De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 194.