Vida – um bonde chamado desejo

 

Elza Marques Lisboa de Freitas

 

 

 

“Chamamos, então, uma crença de ilusão, quando, em sua motivação, a realização de desejo passa para o primeiro plano e, assim fazendo, desistimos de sua relação com a realidade, da mesma forma como a própria ilusão renuncia às suas comprovações”. FREUD, O futuro de uma ilusão (1927). Coleção L&PM Pocket, 2010, página 48.

 

Freud trata, nesse pequeno trecho, de nossa relação com a realidade a partir do desejo e a situa como ponto possível para a alienação. A realidade moldada em nome do desejo. “Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida”  – adverte-nos Cartola, aquele que sabia tudo sobre o amor e a rosa, quanto ao futuro de uma ilusão – “Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho / Vai reduzir as ilusões a pó”, terminando por fazer ecoar os ensinos de Freud e Lacan, ao profetizar:  “Em pouco tempo não serás mais o que és”.

A nós é comandado que saibamos que há aridez na raiz dos poemas. Assim, quer estejamos, e sempre estamos, sob o sol escaldante, ou sob uma tempestade, somos condenados à sede. O grande engano, porém, é que o imperativo da sede seja da ordem instintiva, da sobrevida. A sede e a fome no humano são furadas pelo significante que tal como um vírus  indestrutível, extraiu o humano radicalmente para fora da natureza, de uma harmonia. O significante perfura o humano para toda  a eternidade. Nós temos que nos virar, pois nem no começo dos começos, somos. Somos isso e/ou aquilo.

Desperto o amor, será que a poesia de Cartola protegerá a menina do engodo do desejo?  Sujeitos pelo significante, nos becos, nas ruas, na proteção das casas ou nas guerras …  somos apenas uns assujeitados e, portanto, obrigados ao desejo. A rigor, entre outras coisas mais, cai sobre nós uma espada cega que nos condena irremediavelmente ao desejo. O desejo, esse maldito insaciável. Daí que, como psicanalistas, usando o instrumento da psicanálise,  buscamos a única saída possível para essa maldição. Caímos dentro. Criamos truques, amansamos o bicho e, em nome de não morrer, cultivamos a planta. Plantamos e cuidamos. Amarramos o desejo com letras e com Letra. Construímos edifícios de letrinhas. Tratamos de desconstruí-los quando atrapalham. Construímos salas de abrigar palavras. Palavras para abrigar perguntas. O peito oco de um psicanalista em escuta. O anzol delicado com que pescamos uma ou outra palavra.  E, às vezes, quando emergimos como psicanalistas, capturamos, por momentos, o danado e o estudamos, o amansamos, seguimos-lhe o trajeto. Alguns  entre nós, em árdua tarefa, se aplicam em nos amarrar a todos em esteios teóricos. Pequenos ou  grandes desenhos e outras formas e metáforas, números, cálculos inexatos sempre a deixar resto. Tentamos quantificar, ainda, com X ou N para que possamos trocar ideias sobre os circuitos que nos são. Para que o poema, que se tece entre significante e suporte a ele, não nos perca numa galáxia plena de significados, ou num bonde chamado desejo. O lugar comum “ruim com ele pior sem ele” não nos serve, pois não existe a hipótese de “sem ele”. Existe o não querer saber dele submetendo-se a ele. Numa dessas vezes, um mestre do inconsciente que não tem mestre faz avançar o que nasceu com Freud. Ou mesmo cria outra coisa. Nosso velho companheiro Lacan. O desejo é uma coisa  a nos montar, animais híbridos ao dispor dele.  Numa dessas vezes, nos dirigimos uns aos outros. Até que não.

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