Por Renata Martinez
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção,
e o maior bem pouco é;
pois que a vida sonho é,
e os sonhos, sonhos são.[1]
Com essas palavras da peça “A vida é sonho” de Calderón de la Barca, o colega da EBP Bahia, Marcelo Veras, nos convidou a seguir uma surpreendente amarração entre seu livro recém lançado, “A morte de si”, e o tema das 30as Jornadas Clínicas da EBP Rio e do ICP RJ, “Ilusão”. Nessa 1ª Preparatória rumo ao evento, ocorrida no dia 25 de setembro, Marcelo nos colocou a trabalho a partir do que nomeou como “A desilusão do futuro”, trazendo importantes reflexões e crônicas curiosas envolvendo de Caetano Veloso a Stephen Jay Gold, passando pela poesia de Drummond.
O ponto comum das diversas histórias narradas pode ser localizado no homem como um ser de linguagem e gozo que possui a delirante capacidade de conjugar verbos no futuro. Antecipar o futuro, profetizá-lo com palavras confere a toda dimensão de temporalidade uma tonalidade delirante, além de capturar o sujeito e seu corpo como alvos desse fenômeno ímpar. Assim, a trama linguageira que nos antecede vivifica nossa existência a partir do cruzamento entre o “azar” e o “estava escrito”. A psicanálise entra nesse jogo como uma ferramenta capaz de subverter esse nó, “transformar perdas em pedras”[2], o que faz com que ninguém chegue ao fim de análise sem perceber que seu próprio romance familiar não passou de uma ilusão.
O entrelaçamento do tema de nossas Jornadas com seu livro aparece quando Marcelo nos fala da hipótese ali contida de que todo suicida possui sua carta e, com ela, um destinatário. O suicida também conjuga o verbo no futuro e produz a vertigem de continuar existindo. Tanto a vida quanto a morte são a junção do acaso e do que já está de algum modo ali presente, uma espécie de emaranhado de contingências que tem correlação com o modo como o real intervêm no que “estava escrito”.
Segundo o autor, a desilusão do futuro representará, justamente, o momento da queda, quando algo da cobertura ao real se rompe, nos levando a descobrir como nos arranjar com isso. “A morte de si” pode ser pensada como uma tentativa de dar conta desses momentos cruciais da vida onde o sujeito precisa lidar com os tropeços do real.
Como um alerta, Marcelo nos traz a potência do trabalho de escuta do grupo PsiU[3] com os estudantes da UFBA iniciado a partir da inquietante elevação da taxa de suicídio entre jovens universitários no mundo. A interrogação inicial de sua pesquisa surge de um paradoxo: “ninguém entra para a universidade sem uma aposta no futuro, então, por que os jovens estão se matando tanto?” A realidade brasileira nos põe diante de uma dura situação: a mudança gigantesca no tecido social que compõe a universidade a partir do sistema de cotas – quando negros, indígenas, quilombolas pluralizam o ambiente – também faz aparecer dentro da universidade um problema com o qual ela não está preparada para lidar, a precariedade imposta à vida dessas pessoas.
O que analistas podem fazer nessas situações de miséria? Os atendimentos realizados no ambiente da UFBA explicitam a noção de “utilidade social da escuta”[4], atestam que ter alguém que escuta do outro lado da linha faz com que aquelas pessoas deixem de ser invisíveis. Em muitos casos, são jovens que se separaram de suas realidades, deixaram suas famílias e, uma vez no novo cenário, tiveram uma fragmentação aguda e dura da ilusão de um Outro muito investido – a universidade passa a ser o Outro da demanda e não mais o lugar sonhado de acolhimento e saciedade. As marcas do racismo e da invisibilidade fazem com que seja impossível que a dimensão do futuro com suas ilusões e desilusões seja pensada sem uma profunda reflexão sobre o Outro social e suas consequências concretas.
Nosso convidado termina sua apresentação desejante que a psicanálise possa estar cada vez mais presente na cidade e se faça encontrar nos caminhos desses jovens, pelos becos e vielas das quebradas alargando seus sonhos de centímetros[5].
[1] Calderon de la Barca, A vida é sonho. Editorial Estampa: Lisboa, Portugal, pg. 131.
[2] Referência ao poema “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade, citado por Marcelo Veras durante sua fala.
[3] PsiU – grupo de 32 voluntários, todos analisantes que, a partir de um grupo de whats app, recebem e dividem as demandas de escuta da comunidade acadêmica. Para saber mais sobre o projeto, acesso pelo link: https://cartadeservicos.ufba.br/psiu-plantao-de-acolhimento-da-ufba
[4] MILLER, J-A. Da utilidade social da escuta. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n.38, p.19-22, dezembro 2003.
[5] Referência à poesia da slammer Luz Ribeiro que Marcelo Veras apresenta ao final de sua fala.