Iludir-se [ilusionar-se], ainda[1]

 

 

Marina Recalde

 

Agradeço muitíssimo o convite à Sarita Gelbert e, através dela, às autoridades e ao Comité Organizador, não apenas pelo prazer de trabalhar com vocês uma vez mais, como também porque o tema das próximas jornadas me parece precioso. Como sucede nesses casos, quando alguém é convidado a falar de um tema, imediatamente a gente se coloca a reunir referências que já havia lido, mas que voltam a ter uma segunda leitura, ou ainda vamos a referências novas, que sempre resultam muito enriquecedoras.

Foi o que aconteceu comigo com o tema da ilusão. O primeiro impacto sobre mim foi a pergunta: por que renunciar à ilusão? Se nos curamos disso o que resta? Queremos nos curar disso? O que seria nos curarmos da ilusão? Então, decidi intitular esta abertura: iludir-se, ainda.

Por que iludir-se, ainda? Desde o início já aponto o Seminário 20 como guia, em que Lacan fala, entre outras coisas, do amor.[2]

Então, vou alternar entre o Seminário 20 e o Seminário 8, sobre a transferência, pois é nesse seminário que Lacan fala do amor, tomando O Banquete, de Platão como referência. Não é uma referência de passagem, já que mais da metade do seminário está dedicada a esse texto. Em seguida, tomarei um exemplo clínico, extraído de uma pontuação que faz Éric Laurent do último testemunho de Sílvia Salman, intitulado “Sutilezas do feminino”.

No Seminário 8, em um percurso pelos diferentes discursos sobre o amor extraídos do texto de Platão, Lacan ressalta o discurso de Aristófanes. Erixímaco previne Aristófanes para que não lhe faça zombaria

“caro amigo Aristófanes, cuidado com o que fazes. Zombas de mim quando vais falar e me obrigas assim a vigiar o teu discurso, pois não quero rir de você podes muito bem falar em paz” (p. 69).

O discurso de Aristófanes é talvez a parte mais conhecida do Banquete e apresenta uma estrutura interna muito mais elaborada que as demais, é uma narrativa com as consequências do que é relatado. Encontramos, ali, o mito que relata os avatares, as vicissitudes da natureza humana. No princípio, os seres humanos tinham dois corpos, quatro pernas, quatro braços e duas cabeças com a particularidade de que cada rosto se orientava em direção a lados opostos. Tinham três gêneros: masculino-masculino, feminino-feminino e masculino-feminino (os andróginos). Essa multiplicidade de extremidades lhes deu um poder imenso, excederam-se, com o que se tornaram perigosos. Por isso, Zeus decidiu dividi-los em duas metades. Mas cada metade ansiava pela outra metade. Zeus então decide que a forma de procriação passaria a ser diferente. Em vez de depositar a semente na Terra, vão acoplar-se e por isso cada um vai buscar sua outra metade: Eros faz, de dois, um. Ao encontrarem-se essas duas metades surgem o amor e a alegria. A primeira consequência evidente é que o amor é a busca da unidade. Por outro lado, sempre é Eros. Além disso, o homem busca a satisfação pulsional, porém, além disso, algo que não sabem precisar (o amor). Os problemas com relação ao amor surgiram pela hybris, ou seja, o excesso diante dos deuses.

Isso quer dizer que o excesso levou ao castigo e que o romanticismo reaparece no reencontro. O encontro é possível, a unidade afirma a relação sexual. O amor segue sendo um enigma, no entanto, e dessa separação restará um lembrete: as rugas e o umbigo. É um modo interessante de pensar o testemunho perpétuo da castração decidida por Zeus. Há algo ali, que no próprio discurso de Aristófanes já indica que a completude está perdida para sempre. Ainda que se tente suturá-la, sempre resta o lembrete nas rugas e no umbigo.

Esse ponto me parece crucial e foi assim o que pude escutar da leitura que faz Miller desse ponto, na qual destaca exatamente isto que digo, apenas o lê em termos de zombaria. De uma burla de Aristófanes. Diz Miller:

“… posso referir-me ao mito de Aristófanes no Banquete de Platão, retomado no seminário A Transferência, onde se trata de seres de dois sexos divididos em dois que depois passam a vida tratando de recompor o Um inicial, buscando sua metade pelo mundo. Sem dúvida, este mito de Aristófanes é apresentado como cômico, ainda que tenha sido tomado por séculos como um mito sério, como o ideal do amor. Ao contrário, zomba-se do um fusional neste mito. O Uno amoroso resultaria do enganche dos dois parceiros como chave e fechadura”.

No Seminário 20, Lacan volta abordar o tema do amor, mas lhe dá uma volta a mais, quando localiza debaixo das roupagens o objeto a, assinala que o amor é o desejo de ser Uno e que Eros é também tensão em direção ao Uno. Não diz que Eros consegue, só indica a tendência. Ou seja, ele é impotente para realizar isso. Não há complementariedade entre o Um e o Outro, porque definitivamente são duas solidões que se unem, com o limite que o exílio, que cada um é, impõe ao laço.

Ao final de Mais, ainda, vemos o estatuto de espelhamento que dá Lacan a esse tipo de amor. Ele diz

”não há ali nada além do encontro, encontro em um casal, dos sintomas, dos afetos, de tudo que marca para cada um o vestígio do seu exílio, não como sujeito, mas como falante, de seu exílio da relação sexual. Será que isso não quer dizer que é somente pelo afeto que resulta desta hiância que se pode encontrar algo que, por um instante, dá a ilusão de que a relação sexual cessa de não se escrever? Ilusão de que algo não apenas se articula como também se inscreve, pelo qual, durante um tempo de suspensão, o que seria a relação sexual encontra no ser falante sua marca e sua via de espelhamento?” (p. 175).

Ilusão ou engano num tempo de suspensão, num instante, que esse amor pode escrever a relação sexual e tamponar o real…

Se tomei o Seminário 8 é precisamente porque quis pensá-lo como um antecedente do Seminário 20,  nesse ponto que Lacan enfatiza do discurso de Aristófanes (e que a leitura de Aristófanes como deboche, feita por Miller só faz confirmar). Ao mesmo tempo porque o Seminário 8 é um seminário sobre a transferência, sobre a qual gostaria – se tiver tempo – de conversar um pouco.

Nessa perspectiva, gostaria de tomar uma frase destacada por Éric Laurent no último testemunho de Sílvia Salman, que para mim foi chave quando preparava este texto para hoje e que me parece um enorme ensinamento para todos, para além, inclusive, no caso de Sílvia.

Lembro a vocês, ela situa o que chama uma “sutil erotomania” que a análise permitiu esculpir. A partir de uma interpretação do analista (“não há que se perder o encanto”) essa forma erotomaníaca do amor foi abalada. Essa interpretação permitiu a ela assim advertir-se daquilo de que convinha desprender-se com relação ao uso fantasmático que fazia através do sintoma, uso de ser fugidia e de fazer se agarrar para poder fugir, tentando assim a cada vez fazer existir a relação sexual e, ao mesmo tempo, fugir do que era preciso preservar, uma vez desligada, uma vez separada desse modo edípico de amar. Foi o que Laurent interpretou, como uma sutil erotomania, quando Sílvia leu seu testemunho. Dar-lhe esse toque, acrescentando o sutil, indica aquilo que ficou como resquício dessa erotomania que comandava a sua vida. Já não é erotomania, agora é “sutil”, indicando precisamente outro uso.

Gostei do termo sutil precisamente porque dá conta da dimensão ineliminável desta ilusão, da qual, mesmo quando se está estando advertido, não deixa de ressoar em um determinado empuxo, que não cessa com a tentativa de velamento.

É uma frase que evoca também o Lacan do Seminário 11 quando se pergunta pelo amor no final de análise e o situa em termos de um amor para além dos limites da lei. Poderíamos dizer, para além da lei edípica. Dessa forma, plenamente articulado à repetição, esse amor, além dos limites da lei, sai do circuito da repetição e vem se localizar na contingência. É o que a seguir Lacan situará em termos de um amor mais digno. Penso que podemos dizer que é este amor construído sobre a sua própria castração.

O que quer dizer isso? Um amor fora dos limites da lei? É um amor que não precisa velar que a relação sexual não existe? É um amor que não precisa se iludir aqui e ali?

Gostaria de trazer, então, algo que para mim foi impactante, para poder ir avançando na conversação sobre esse parágrafo que tem, em meu entender, uma riqueza enorme.

Há alguns dias, aconteceu na EOL uma conversação pelo zoom com Jacques-Alan Miller quando da apresentação do livro Como terminam as análises. Nessa ocasião, com relação a uma pergunta sobre o amor mais digno no final da análise, Miller re-perguntou: por que há que se fazer do amor algo mais digno? Ou seja, em que o amor é indigno? E ele situou que o amor é indigno quando se reduz a falatórios sobre o Uno, o Uno unitivo. Um amor, poderíamos dizer, totalmente sustentado na ilusão desse Uno que Miller chama “a estupidez do amor unitivo”. Estupidez porque reside “no apagamento, na negação da experiência efetiva que nos ensinam os fracassos ordinários cotidianos da relação sexual”, e esclarece que talvez não sejam fracassos e sim dificuldades.

“Neste discurso – dizia – que é indigno e ridículo, oposto a todo pensamento digno. Assim, sabemos qual é o fundamento do amor indigno, é a crença na existência da relação sexual. Prescindir desta relação nefasta – escreve Lacan – constituiria um amor mais digno que o blá-blá-blá infatigável do amor unitivo. O amor só pode recuperar sua dignidade através do saber, o amor não é nada mais que suplência da relação sexual na medida em que ela não existe”.

E continua:

”de que tipo é esta suplência? Segundo Freud a imaginária. Todo amor é narcisista em seu fundamento. Quer dizer, cada um ama a si mesmo através do outro. Mas o amor freudiano não permite sair de si mesmo. O outro do amor se reduz ao eu. Não é assim com Lacan, pelo menos o Lacan do Seminário 20. O amor reúne dois parceiros, cada um de fora, exilado da relação sexual que não existe e que deixa cada ser falante em sua solidão, fora o espelhamento narcísico. O amor não é nada além que um encontro aleatório entre duas solidões (…) que reconhecem no outro os afetos que resultam da maneira pela qual cada um suporta seu exílio da relação sexual – é quase uma citação de Mais, ainda. É uma ilusão? Sim, mas que se refere ao real, ao real da inexistência da relação sexual. O amor parece suspender o real impossível da relação sexual e dar a ela existência. Assim trata-se no amor de um parênteses no impossível. Um parênteses que resulta da contingência de um encontro. Isso se traduz na teoria lacaniana pelas modalidades: o impossível, como aquilo que não cessa de não se escrever está suspenso por uma contingência que cessa de não se inscrever. A contingência é o contrário, nesta teoria, do impossível, não da necessidade – isso é próprio de Lacan – da necessidade enquanto não cessa de escrever-se. Não há amor necessário que não seja fantasmático”.

Como vemos é um parágrafo muito bonito, pleno de questões das quais gostaria de me servir para hoje.

A neurose, a pleno vapor, tenta pela via do amor escrever o que não cessa de não se escrever, ou seja, a relação sexual que não existe. Vejamos agora: levar uma análise até o final implica ter podido contingentemente, escrever “algo” disso que não cessa de não se escrever (apesar de tentar fazê-lo). Então, no entanto, algo se escreve. O que não cessa, então, de tentar falhadamente de escrever a relação sexual, que localiza o sujeito agarrado nas ordens superegoicas, que o impele repetidamente a enredar-se nos emaranhados – dignos, mas difíceis – do gozo fálico, regando e nutrindo o sintoma e a fantasia.

Por outro lado, outra perspectiva: o que não cessa. É a dimensão da pulsão, uma vez que se elucidou o fantasma e o pathos do sintoma, que permite pensar um novo destino para essa constante pulsional, que tampouco cessa, mas que em certo sentido permite que algo cesse de não se escrever, contingência que possibilita saltar a necessidade, aquela que empuxa para a repetição.

Ponto de chegada que permite diferenciar que o real não é mais somente o impossível, mas o contingente, modo como Miller situava que aquilo que “cessa de ser impossível, cessa de não se escrever”. Ou seja, algo se escreve. Mesmo que apenas por um momento, é algo que é escovado, soprado, alcançado e… depois volta a não ser escrito. Como disse o meu amigo Marcus (a quem agradeço a tradução) dura o tempo que dura. E é assim que as coisas são. Um real como contingente mais que impossível. Bela fórmula de safra milleriana, que permite ajustar ainda mais a perspectiva do sinthoma com a lógica do não-todo.

Expressões contingentes então da lógica do não-todo que permitem um novo modo de evitar a fixação da função fálica. Já que o que é o falo se não aquele que se situa entre homens e mulheres indicando que a relação sexual, ou seja, a proporção, não existe, mas que paradoxalmente intenta dar uma medida que suporia evitar o mal entendido, quando na realidade não faz nada além de nos desencontrar?

Não menosprezemos, porém. Tal como nos recorda Lacan (em Decolagem)

“isso não significa que (as mulheres) não possam ter, com um só, eleito por elas, a satisfação verdadeira-fálica (…). Para isso é preciso que [ela] acerte. Que acerte com o homem que lhe fale segundo sua fantasia fundamental, a dela (…). Não ocorre muito frequentemente”.

Não ocorre tão frequentemente então, mas ocorre. Não subestimemos esses encontros.

Se a análise ensina alguma coisa (ao menos no meu caso, entre outras coisas, foi) é que, há algum modo possível de amar e ser amada de outra maneira, ou de, ao menos roçar essa borda. Foi a virada que encontrei. Modo imperfeito, claro, mas que permite sair da pergunta neurótica atormentadora, que supõe localizar no Outro o interrogante sobre seu próprio ser.

Ou seja, tomar a vitalidade que me constituía, nas suas duas faces (isto é, como um golpe de vida que vivifica um corpo nas suas duas dimensões: do tremor aterrorizado e sofredor e daquele que é o sinal de um corpo vivo) permitiu-me dizer que agora essa vitalidade tem um outro uso. Esse novo uso já não é o uso mortificante, mas aquele que agora insiste, implica dar um novo destino à pulsão que não cessa. Por outras palavras, o dizer sempre sim foi sustentado no esforço de fazer existir a relação sexual, capturado também no limite que o dizer sempre sim implica, face ao Não do Outro. É um modo que permanece enredado no sim e no não, que em cada neurose toma sua forma. Esse novo lugar vai para além do dizer sim ou não e permite-nos amar e ser amados de uma nova maneira. É um dizer sim ou não sem o Outro. É um haver, contra o pano de fundo do não haver.

Claro que tenho as minhas angústias, os meus excessos e as minhas dificuldades, mas de vez em quando… algo se escreve, na contingência.

Ou seja, é uma nova libidinização, uma nova forma de amar, não mais edípica, mas não sem resquícios, que nos lembram que o não-todo é escovado, soprado mas não alcançado. Uma indicação de que o real é indomável. O desvio, sobretudo numa mulher, é uma tentação perigosa, que a castração felizmente limita.

Portanto, iludir-se, ainda.

Iludir-se, ao menos um pouco, sabendo que – como recordava Miller – se trata de um parênteses, um stop no impossível. Stop que resulta da contingência de um encontro. Não ocorre em todos os encontros, apenas com alguns e de vez em quando. Aqueles encontros que permitem, de quando em vez, iludir-se ainda.

 

 

Tradução: Marcus André Vieira

 

 

[1] Ambos os termos são dicionarizados em português, porém, a penas o primeiro é de uso corrente, como o ilusionar-se em espanhol.
[2] Este seminário em português leva o título “Mais, ainda”, no original e em espanhol, apenas um termo, encore e aún, ainda.

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