◼Eixo 3 – Ilusão nos discursos
Discursos, no sentido de Lacan, são modos do laço social. É nessa perspectiva que indagamos o que se pode dizer da Ilusão nos discursos hoje.
Freud supera a oposição “individual” e “social” e situa o fundamento do vínculo social na absoluta dependência infantil do Outro parental. A ilusão religiosa decorre do anseio pelo pai e pelos deuses e da necessidade de tornar tolerável o desamparo humano. Em tempos de declínio da função do Pai, o papel da religião permanece o mesmo?
Se, por um lado, há um esvaziamento da tradição, por outro lado, assistimos a uma proliferação de seitas e adesão a todo tipo de sistemas pseudocientíficos.
Freud, com seu ideal de ciência, talvez tenha apostado nessa última como uma possibilidade de superação da ilusão no laço social. Se, com Lacan, a ‘ilusão’ freudiana relativa à ciência é mitigada por sua localização como um discurso entre outros, situável a partir do discurso analítico, no mundo, a ciência parece pretender ainda essa prerrogativa, apoiando-se em evidências. Ao negacionismo científico que vimos assistindo são opostos os fatos. Mas, na oposição “fato ou fake”, o fato não corresponde ao que, na psicanálise, se toma por real. Tampouco o fake se coaduna ao que articulamos nos termos de uma verdade mentirosa.
Mais do que um problema epistêmico, o negacionismo hoje segue um projeto político. Como abordar esse tema desde a perspectiva psicanalítica? A noção psicanalítica de que a verdade é um semblante fez adeptos perigosos entre os homens de poder, como assinalou J. A. Miller (2015, p.326).
Freud já alertava que uma ilusão não é necessariamente um erro e não precisa tampouco ser falsa. O que a define, sobretudo, é ser uma derivação do desejo. E, ainda que possa levar ao pior, como no caso da “afirmação de certos nacionalistas de que os indo-germânicos seriam a única raça humana apta à cultura” (Freud, 1927, p.263), cabe ressaltar que ela pode também ser suporte para uma vida individual ou coletiva.
É certo que, em seu texto de 1927, Freud vincula essencialmente a ideia de ilusão à religião. Mas e os outros discursos? Neles não estão em jogo as ilusões? É preciso considerar também o lugar que as ilusões ocupam para a própria possibilidade do laço social, para além de seus lugares distintos nos diferentes modos de laço.
Que outros fenômenos discursivos podem ser abordados pela função da ilusão descrita por Freud? Aguardamos o envio de trabalhos que possam abordar clinicamente, além do que introduzimos acima sobre o papel da religião e o tema do negacionismo, outros tópicos relacionados às ilusões no discurso civilizatório contemporâneo, tais como o tema do racismo (e sua denegação), das identidades e lutas coletivas, do consumo capitalista, das tecnologias e do ciberespaço e do recurso às drogas.
◼ Angela Bernardes e Vinícius Darriba
____________________
◼ Referências Bibliográficas
● DUBA, Cristina. “A psicanálise entre guerras”. Em: Arquivos da Biblioteca, nº 17. Escola Brasileira de Psicanálise- Rio de Janeiro. Goiânia: Kelps, 2022.
● FREUD, S. (1921) “Psicologia das massas e análise do eu”. Em: Obras incompletas de Sigmund Freud: cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
● ____. (1927) “O futuro de uma ilusão”, Em: Obras incompletas de Sigmund Freud: cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
● ____. (1930) “O mal-estar na cultura”, Em: Obras incompletas de Sigmund Freud: cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
● ____. (1909-1939) Cartas entre Freud e Pfister: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Viçosa: Ultimato, 2009.
● LACAN, J. (1966) “A ciência e a verdade”. Em: Escritos. Rio: Jorge Zahar Ed., 1998.
● ____. (1977) “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. Em: Outros Escritos. Rio: Jorge Zahar Ed., 2003.
● MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de janeiro; Jorge Zahar Ed., 1996.
● MILLER, J. A. “Brújula de la última enseñanza”. Em: Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015.
● SAFATLE, V. “Medo, desamparo e poder sem corpo”. Em: Obras incompletas de Sigmund Freud: cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.