Ilusão e real no cinema – Sobre o filme “Retratos Fantasmas” de Kleber Mendonça Filho
Maria Inês Lamy
“Os filmes de ficção são os melhores documentários.”[1] Esta frase, que um personagem sussurra para outro como um segredo, serve de guia para “Retratos fantasmas”. Parecendo inspirado em Lacan, para quem a verdade tem estrutura de ficção, o cineasta relaciona seus filmes a episódios de sua vida. O limite entre ficção e realidade se embaça, sob a égide da verdade mentirosa. A casa da infância é registrada em fotos e vídeos e o diretor chega a encenar, com a família e amigos, a tentativa de assalto que havia acabado de ocorrer na vizinhança. Sua mãe já falecida, presença marcante que parece ter transmitido o amor à História e às histórias, assume um novo lugar quando é vista na tela da televisão. O cinema é apresentado como uma ilusão que tem função de anteparo, tela diante do real. Cada take escolhido denota o ponto de vista do diretor, sua maneira singular de contar a história.
Ao longo das filmagens de Kleber Mendonça Filho, vemos que as surpresas são bem-vindas, como a participação especial do cachorro vizinho, que irrompe na cena com seus pulos e latido. Por outro lado, algo da ordem do Unheimlich emerge no início do filme: um fantasma que se imiscui em uma das fotos, mancha que invade seu campo de visão. Os fotógrafos e cineastas geralmente buscam enquadrar o insólito, abrem-se às contingências, mas às vezes esbarram em algo além. ‘Retratos fantasmas’ – é bem disso que se trata. Tentativa de capturar imagens, dando-se conta de que algo escapa e que o real pode emergir, assombrando.
Kleber Mendonça, quando registra pessoas saindo do cinema, indica que elas estariam deixando o mundo de ilusão dos filmes e voltando à realidade. Será? Segundo Lacan, o despertar salva da angústia, ou seja, acordamos para continuar a sonhar. Os bons filmes, assim como os sonhos, tocam o real. A cena fantasmática funciona como ilusão que circunscreve o ponto de horror.
O clima mágico, quase assombrado, que ronda o filme, evidencia-se no fim quando o motorista do uber some do olhar de Kleber Mendonça, tornando-se invisível. Vendo-se guiado por ninguém, a angústia emerge e o diretor afivela o cinto de segurança. O cineasta transforma-se em ator mesclando documentário e ficção. Mas o absurdo mostra sua face de humor, trazendo alívio à atmosfera nostálgica do filme e talvez sobretudo tentando encobrir o cerne da atividade cinematográfica que aí se revela: o objeto olhar. No final o carro sem condutor percorre as ruas do Recife. O olhar passeia pela cidade.
O cineasta alemão Wim Wenders, no filme “Janela da alma”[2], confessa que jamais abriria mão dos óculos, uma vez que eles enquadram seu olhar. Tentou usar lentes de contato mas, sem a armação dos óculos, diz ele que vê demais. O enquadre e o que escapa ao enquadre – parece ser esse o ofício dos artistas que tentam colocar na tela o que captam com as câmeras. O belo “Retratos Fantasmas” nos ensina que o cinema é isso: ilusão que tenta dar um contorno de ficção ao real do olhar.