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Editorial

“Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que Dom Quixote os viu, disse para o escudeiro:

– A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra e bom serviço a Deus quem tira tão má raça da face da terra.

– Quais gigantes? – disse Sancho Pança.

– Aqueles que ali vês – respondeu o amo-, de braços tão compridos,
que alguns os têm de quase duas léguas.

– Olhe bem,Vossa Mercê – disse o escudeiro- que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e o que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.

– Bem se vê – respondeu Dom Quixote – que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou
entrar com eles em fera e desigual batalha.”1

O tema da ilusão levou a Coordenação das Jornadas a uma célebre cena literária: Dom Quixote lutando com moinhos de vento imaginando que estes fossem gigantes cruéis. Desde a publicação dessa obra, que é considerada o primeiro romance moderno, moinhos se tornaram metáforas recorrentes na literatura ocidental. No Brasil, por exemplo, um dos maiores sambistas da música brasileira, Cartola, gravou em 1976 uma de suas músicas mais conhecidas, cujo refrão nos oferece os seguintes versos:

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó2

Os moinhos são movidos para a produção de alimentos, mas eles também movem ilusões – e se transformam em inimigos. E por mais que se diga que essa é uma luta inútil, os moinhos podem ainda soprar fantasias, insuflar desejos, inspirar poesia e encorajar amores.

Reforçando o convite feito no dia do lançamento das 30as Jornadas Clínicas da EBP-RJ e ICP RJ, apresentamos mais uma vez o argumento, os eixos e a bibliografia sobre o tema Ilusão que irão nos instigar, provocar, entusiasmar e incentivar a produção de palavras, escritos, debates, conversas e questões que nos preparem para tratarmos, em nossas clínicas e transmissões, do presente e do futuro da ilusão no horizonte de nossa época.

1 Cervantes de Saavedra, Miguel de. (1547 -1616). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

2 https://open.spotify.com/intl-pt/track/3PavsmA9S6QA5lNmmsuOif?si=3DCFk73OQuyrc5ZpDZ1LnQ&nd=1


 

Argumento

 Angela Bernardes e Maria Silvia G. F. Hanna

Ilusão é o tema proposto para as XXX Jornadas Clínicas da EBP-Rio em parceria com o ICP-RJ.

Embora não seja um conceito psicanalítico propriamente dito, a noção de ilusão abarca temas que nos interessam formular desde a perspectiva da psicanálise. Em seu célebre texto de 1927, “O futuro de uma ilusão”, Freud correlaciona a ilusão ao desamparo inaugural do homem, termo que aloja a dimensão do real elaborada por J. Lacan.

A ilusão faz parte da vida de todos os seres falantes. Segundo Lacan, Freud considerou que “tudo não passa de sonho”1. “Somos todos delirantes”, acrescenta Lacan num pequeno texto publicado em 19782. Essa passagem orienta o trabalho da Associação Mundial de Psicanálise rumo ao Congresso de 2024, “Todo mundo é louco”.

Os eixos de trabalho para as XXX Jornadas no Rio abrem três campos nos quais se poderá examinar o lugar e a função da ilusão, seja quando sustenta um sujeito em seus laços, seja quando cai – queda que ocorre na medida em que as ilusões não se sustentam frente a algo que irrompe de maneira inesperada. Quais efeitos se verificam nas diferentes respostas subjetivas?

Cada um é louco a seu modo. Que ilusões estão envolvidas nos diferentes sintomas? O encontro com o psicanalista perturba a ilusão como defesa frente ao real insuportável? Quais relações entre a ilusão amorosa e o furo real da relação que não existe? O que os casos nos ensinam?

É preciso considerar que, ainda que confronte ilusão e realidade, em seu texto de 1927 Freud assinala que uma ilusão não é necessariamente falsa. Interessa a ele a sua relação com o desejo. O que dizer das ilusões nos discursos nos quais estamos inseridos?

Apresentamos a seguir os argumentos dos diferentes eixos, convidando os colegas da EBP-Rio e do ICP-RJ a nos endereçarem suas contribuições para dar vida ao debate aqui proposto.

1 “rien n’est que rêve” adotamos a tradução da citação feita por J. A. Miller em “Todo mundo é louco, AMP 2024”, Opção lacaniana n. 85, 2023, p.14. 2Lacan, J. (1978) “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes”, Correio São Paulo, Escola Brasileira de Psicanálise, n 65, 2010. Pp 31-32.


Eixo 1 – Ilusão nas loucuras

Ana Beatriz Freire e Maria Silvia G. F. Hanna

“(…) longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades(…), ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência (…) E o ser do homem não (…) pode ser compreendido sem a loucura(…)”

As palavras de J. Lacan inspiram o eixo intitulado Ilusões nas loucuras, que acolherá os trabalhos que abordem e interroguem o lugar, a função e o destino das ilusões nas loucuras do falasser nos dias de hoje.

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Eixo 2 – Ilusão no amor

Angela Negreiros e Paula Legey

Existe amor sem ilusão? O amor é sempre recíproco, afirma Lacan. Com isso, ele sublinha a tendência de que vá em direção a si mesmo. Ainda que o amor se sustente na escolha por apoio, ele está fundado no narcisismo originário. O simbólico vem inscrever a falta como constitutiva do ser de linguagem e Lacan assim define o amor em sua face simbólica: “Dar o que não se tem”. É da própria falha no campo da linguagem, de sua insuficiência em alcançar algo do ser, que brota a demanda do amor. Essa via pode levar às devastações, às loucuras de amor, à erotomania… que não estão presentes apenas nas psicoses, mas são posições possíveis para qualquer ser falante no drama amoroso.

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Eixo 3 – Ilusão nos discursos

Angela Bernardes e Vinícius Darriba

Discursos, no sentido de Lacan, são modos do laço social. É nessa perspectiva que indagamos o que se pode dizer da Ilusão nos discursos hoje.

Freud supera a oposição “individual” e “social” e situa o fundamento do vínculo social na absoluta dependência infantil do Outro parental. A ilusão religiosa decorre do anseio pelo pai e pelos deuses e da necessidade de tornar tolerável o desamparo humano. Em tempos de declínio da função do Pai, o papel da religião permanece o mesmo?

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Bibliografia ampliada

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