◼ Por Maricia Ciscato[1]
“A contingência, eu a encarnei no ‘para de não se escrever’. Pois aí não há outra coisa senão encontro, o encontro no parceiro dos sintomas, dos afetos, de tudo que, em cada um, marca o traço do seu exílio, (…), do seu exílio da relação sexual. Não é o mesmo que dizer que é somente pelo afeto que resulta dessa hiância que algo se encontra (…) que, por um instante, dá a ilusão de que a relação sexual ‘para de não se escrever’?” (…) Todo amor, por só subsistir pelo ‘para de não se escrever’, tende a fazer passar a negação ao ‘não para de se escrever’, não para, não parará. Tal é o substituto que (…) constitui o destino e também o drama de todo amor.” (Lacan, J. Seminário 20, Zahar 1985, pp 198-99)
Sob demanda da coordenação da comissão científica das nossas 30as Jornadas, me deparei com esse trechinho de Lacan no Seminário 20, enviado a mim para tecer um breve comentário, algo rápido. Com o pouco tempo em jogo, eu não poderia me debruçar na leitura do capítulo todo, desdobrada em textos de apoio e outros autores, como seria meu modo comum de operar diante do compromisso de leitura de um texto de Lacan. Como responder então? Li por diversas vezes o trechinho, em momentos diferentes, ao longo dos três dias de que dispus, incluindo o final de semana. Deixei as frases ressoando em outras leituras que venho fazendo, deixei que trabalhassem por conta, as leituras em mim. Não, não seria eu a interpretar o trechinho. Seria ele a me interpretar.
Necessidade, impossível e contingência, amor e ilusão, o que não cessa de se escrever, o que não cessa de não se escrever e o que cessa de não se escrever, a leitura, a escrita, a análise… O “ponto de cessação”. Havia lido, poucos dias antes, a bela expressão cunhada por Jean-Claude Milner: “ponto de cessação”[2], ao qual ele articula um ato, o “ato da poesia”. Já não estamos no “ponto de basta” em que a metáfora do NP nos possibilita uma parada diante da demanda do Outro; uma outra terra é pisada, sem as balizas paternas a nos orientar. Encontrei, então, meu ponto de articulação com o trechinho de Lacan me ofertado pelas Jornadas.
A contingência em que – mesmo que por um tempo apenas, um tempo breve ou um tempo mais extenso, mas um tempo apenas – o que não cessa de não se escrever se poetiza pode se dar em um encontro amoroso?
O modo como chegamos a amarrar nossa extimidade exige certamente um passo além do ódio a si, ao Outro em cada um de nós. Exigiria, portanto, também uma certa relação com o amor (seria essa a relação um pouco “mais digna” que gostamos de mencionar)?
A não existência da relação sexual não para e não parará de se impor, nos incita Lacan. O ponto de cessação que nos interessa não equivale, portanto, de modo algum, a qualquer inscrição da relação sexual. O que se escreve então? A poesia me dá uma pista: O que se escreve é o que permite que cesse, por um momento, a ilusão de que necessitamos fazer existir a relação sexual para viver o amor. E, nesse instante, o poético, nós o experimentamos em sua inscrição mais absurda, radical e viva, estranheza. Nos experimentamos em nossa mais absurda, radical e viva estranheza. Só por um tempo, mas, que, em uma vida, tal como em uma poesia, pode nos levar ao encontro de rimas e combinações e nos fazer navegar por trilhas antes insuspeitas, em nós, n’Outro.